Além do horizonte: o polêmico debate sobre verticalização das cidades
Excelente negócio para o mercado imobiliário e para as prefeituras, a tendência tem sido freada com ações na Justiça
Solução para o crescimento dos grandes centros urbanos, desde o início do século XX, os arranha-céus se transformaram em símbolos de modernidade e de prosperidade econômica. Da perspectiva do planejamento, os prédios funcionam como modo inteligente de adensamento populacional. Empilhar moradias, contudo, é também bom negócio para as construtoras e prefeituras — que multiplicam as arrecadações do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU). Não raro, a busca pelo lucro gera extrapolações. De um lado, as empresas de engenharia civil tentam burlar leis de uso e ocupação do solo, para incorporarem como e onde bem entendem. De outro, as prefeituras sucumbem à pressão e aprovam exceções nas leis para afrouxar as regras. Sobra, como desfecho indevido, para a Justiça, a quem cabe pôr rédeas no avanço desenfreado das ilegalidades.
Há, portanto, uma triste novidade no horizonte: a chuva de brigas judiciais nas metrópoles brasileiras. No fim do ano passado, um prédio de 36 andares, com apartamentos avaliados em 4,4 milhões de reais, na cidade catarinense de Blumenau, foi condenado à demolição. O Condomínio Grand Trianon está em Área de Preservação Permanente, próximo ao Rio Itajaí-Açu. A sentença da 1ª Vara Federal municipal diz ainda que o prédio ocupa área maior que o planejado e que suprimiu mata nativa.
A batalha deve ir longe, em vaivém de liminares, e por isso é sempre bom olhar para a história. Em São Paulo, um caso emblemático do mercado imobiliário de luxo ilustra o tempo que um imbróglio como o catarinense pode levar para acabar. Em uma região nobre, próxima à Marginal do Rio Pinheiros, o “espigão da Tucumã”, como ficou conhecido, foi incorporado em 1994 e, cinco anos depois, embargado, por despontar 30 metros mais alto que no projeto aprovado. A incorporadora fez adequações sagazes: comprou um lote de terreno ao lado do edifício para acrescentar área de recuo, e assim ficar dentro da lei em relação à altura, e demoliu parte da lateral do prédio. Apenas em 2016 conseguiu o habite-se — o alvará de habitação — sem nenhuma ressalva.
É difícil segurar a ambição que termina nas barras. Com o mercado aquecido, as construtoras fazem de tudo para ter um diferencial, sobretudo nas orlas do litoral. Em Salvador, a pequena Praia do Buracão, no Rio Vermelho, é um desses locais que viraram ímã de exageros. O lugar tem extensão de pouco mais de 400 metros de areia, cercada de pedras, mata virgem e condomínios recuados, com acesso por um escadão. “Como todo mundo se conhece, você pode deixar o celular e o chinelo na areia, que ninguém rouba”, diz Mariana Queirós, 41 anos, integrante do SOS Buracão, movimento montado para barrar abusos imobiliários na região. Nesse pequeno paraíso, a OR, braço da antiga Odebrecht, atual Novonor, pretende subir duas torres residenciais, uma de quinze andares e outra de dezesseis. O caso foi parar no Ministério Público, que pediu à OR um estudo de impacto ambiental. A construtora assegura estar dentro da lei. “Há um incentivo municipal de regeneração urbana em locais de construções deterioradas”, defende-se Daniel Sampaio, diretor-superintendente da sede baiana da empresa. O executivo se refere ao terreno com três casas abandonadas, que a construtora comprou na praia para incorporar os prédios. A OR se encaixou em uma exceção da lei de uso e ocupação do solo e já apresentou e aprovou o plano de requalificação do entorno. É uma contrapartida que incluiu iluminação pública, novo passeio e mobiliário, entre outras benfeitorias.
O maior problema do local, no entanto, é a falta de recuo do terreno da praia. “Isso vai fazer com que as torres projetem sombra na faixa de areia”, diz o arquiteto Daniel Passos, de 32 anos, frequentador do local. Isso já acontece com o maior prédio da vizinhança, o Magistrale, de nove andares, com apartamentos de quase 300 metros quadrados, avaliados em 3 milhões de reais. Em 2012, um antigo casarão, onde morava o músico Carlinhos Brown, foi demolido para que o Magistrale subisse — e só não ganhou mais andares porque foi contido pela ação do SOS Buracão. O que mais se escuta dos moradores e frequentadores da região é o temor de que a praia vire uma espécie de Camboriú.
Exemplo de verticalização agressiva, a orla da cidade catarinense ficou famosa pelos prédios altos e modernos. Entre os edifícios estrelados, destaca-se o One Tower, com 84 andares, também conhecido como o “prédio do Neymar”. O jogador comprou a cobertura quadrúplex, avaliada em 60 milhões de reais. Gigantes de concreto como esse viraram um problema para os banhistas. Depois das 14h, o sol some da praia e dá lugar à sombra dos prédios. A prefeitura tentou resolver o problema triplicando a largura da faixa de areia, em 2021. Recentemente, o mar avançou e tomou de volta alguns trechos. “O problema não é a verticalização, mas o excesso”, diz Nabil Bonduki, professor de planejamento urbano da Universidade de São Paulo. “A orla tem de ser ocupada de maneira adequada às condições ambientais, paisagísticas e urbanas do local.” O caminho da sensatez está rabiscado.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887