A nova pista que pode levar à solução do mistério da fórmula da Coca-Cola
A empresa admitiu pela primeira vez ter tomado inspiração de um tinto francês do século XIX
Um dos grandes segredos modernos, a fórmula da Coca-Cola repousa dentro de um cofre na cidade de Atlanta, nos Estados Unidos, em um museu dedicado ao refrigerante. A história exagerada que se divulga é que apenas dois executivos da empresa a conhecem 100% — e, por questão de segurança, jamais embarcam no mesmo avião. Muitos químicos já se debruçaram sobre a receita que se faz cercar de mistério e até chegaram perto de decifrá-la, mas ninguém sabe ipsis litteris, ingrediente a ingrediente, o conteúdo das latinhas e garrafas. Agora, uma pista do enigma acaba de vir à tona: a própria Coca-Cola publicou, em seu site europeu voltado para o público da Bélgica e de Luxemburgo, que a bebida disseminada planeta afora nasceu de uma tentativa de recriar um vinho francês produzido no século XIX na montanhosa ilha da Córsega — algo há décadas martelado, mas nunca confirmado oficialmente. O inventor do líquido, que teria fins terapêuticos e consistia numa mescla de uvas de Bordeaux com folhas de coca vindas do Peru, era Angelo Mariani, um farmacêutico local.
Quando surgiu, em 1863, o vinho, batizado com o sobrenome do criador, se apoiava em uma descoberta: o tinto de Bordeaux ativaria as propriedades das folhas de coca trituradas, resultando no que era então vendido como tônico medicinal. E ele vinha com uma promessa embutida: aliviar dores variadas e agir como uma espécie de “vacina” contra uma série de doenças. Rapidamente, virou fenômeno, circulando por taças das elites da Europa e dos Estados Unidos e encantando figuras variadas, como a rainha Vitória, o escritor francês Émile Zola e até o papa Leão XIII. O líquido continha 20% de folhas de coca, usadas há mais de 10 000 anos por povos da América Latina por seus alegados valores nutricionais e medicinais. Apesar de a planta que serve de base para a cocaína ser a mesma, no caso da droga ela passa por um processo que adiciona uma imensa quantidade de produtos químicos — estes claramente maléficos à saúde. Fazendo piada, o artista que assinou a Estátua da Liberdade, Frédéric Bartholdi, chegou a afirmar que o monumento “seria muito mais alto” caso ele estivesse sob o efeito de tal vinho quando o concebeu.
Produzida em larga escala, a bebida chegou a alcançar a marca de 10 milhões de garrafas por ano, até ser proibida em 1914, justamente quando os efeitos nocivos da cocaína começaram a ser vastamente pesquisados. E assim também a folha de coca passou a ser malvista. A produção parou aí, mas antes disso o sucesso do rótulo Mariani já havia inspirado o farmacêutico americano John Stith Pemberton, que fez sua própria versão do vinho duas décadas mais tarde e o batizou de French Wine Coca. A única diferença ficava por conta de um toque pessoal: ele adicionou à mistura a cafeína da noz-de-cola, também propagandeada como remédio para dores gástricas e até impotência sexual. Seu experimento, porém, teve vida curta, já que o estado da Geórgia, onde fica a sede da Coca-Cola, adotou uma Lei Seca vetando o consumo de álcool. Pemberton então trocou o vinho por água com gás e açúcar — e eis aí o refrigerante, que foi sofrendo modificações com o tempo. “Pode-se dizer que a Coca é uma espécie de neto do vinho francês”, disse a VEJA o americano Mark Pendergrast, autor do livro For God, Country & Coca-Cola, que narra a saga da bebida.
Mas a história não terminou aí. Há dez anos, um distante parente do farmacêutico da Córsega, Christophe Mariani, decidiu relançar o vinho, o que muito desagradou à multinacional de Atlanta, sobretudo pelo nome escolhido: Coca Mariani. Desenrolou-se a partir deste ponto uma batalha nos tribunais, com a dona do refrigerante argumentando que aquilo poderia confundir os consumidores. Um novo episódio nesta trama sem fim teve início em agosto deste ano, quando uma garrafa de 144 anos do velho vinho Mariani foi achada na adega de uma família francesa. O raríssimo exemplar acabou nas mãos de especialistas do Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica, que agora estudam sua composição — o que pode dar chancela científica ao elo entre o vinho francês e o refrigerante.
Foi apenas dois meses após o aparecimento da antiga garrafa que a Coca-Cola assumiu que Pemberton “inventou uma variante única do vinho Mariani”. Logo depois, a informação, inexplicavelmente, sumiu das redes. Procurada por VEJA, a empresa não se pronunciou. Já Christophe, o último representante do clã Mariani, falou: “Este reconhecimento público é uma vitória justa, que finalmente admite a influência de nosso vinho na Coca”.
É sabido hoje que a icônica receita do refrigerante combina substâncias como xarope de milho rico em frutose, cafeína, ácido fosfórico e o enigmático 7X, cuja composição nunca foi revelada. Alguns palpiteiros sugerem ainda que a bebida contém baunilha, limão e até lavanda. “Atualmente, reproduzir algo muito próximo à fórmula da Coca-Cola não é difícil”, afirma Mark Pendergrast, enfatizando que a aura de enigma em torno da exata receita é um de seus mais potentes ingredientes. A propósito, a empresa vendeu em 2023 quase 2 bilhões de unidades de sua bebida, enquanto o rótulo Mariani registrou produção de 10 000 garrafas. Mesmo assim, o herdeiro Christophe provoca, trazendo à luz uma entrevista de Pemberton, o farmacêutico americano, de 1885. “Ele reconheceu ter copiado o que havia de melhor”, diz, ansioso pelo resultado do exame da garrafa de mais de um século. É aguardar as cenas dos próximos capítulos.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921