“A dor não passa, mas a gente aprende a caminhar com ela”
O relato emocionado de Jacira Francisca Mateus, que perdeu o filho de 32 anos no rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho

“Desde o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019, minha vida nunca mais foi a mesma. Todo dia parece o mesmo. Toda hora parece parada. É como se o tempo tivesse congelado naquele instante. A tragédia impactou tudo. Minha rotina, minha saúde, minha casa, minha família. Os domingos, que antes eram de risadas e almoço em família, perderam a cor. Não existem mais.
Meu filho Thiago tinha 32 anos. Era um menino alegre, sorridente, cheio de vida e de força. Tinha deficiência no braço e na perna, mas isso nunca o impediu de fazer nada. Trabalhava na Vale havia treze anos. Nos fins de semana, cortava o cabelo do pai, lavava os carros. Quando chegava do trabalho, era certo: ele vinha com aquele sorriso e perguntava: “Ô, mãe, tem café?”. Brincalhão, carinhoso, cheio de energia. Era meu meninão. Mesmo com todos os desafios que enfrentava, ele me dava força. Muita força.
Nossa relação era linda. Às vezes, eu precisava chamar sua atenção – coisas de mãe. Mas ele não levava nada a sério por muito tempo. Não guardava mágoas, não sabia o que era rancor. Tinha um coração puro, desses que não se vê mais. Nunca pensei que teria que enterrar um filho. E pior: sem um último adeus, sem poder vê-lo, em um caixão fechado. É uma dor que não se explica. Só quem passa entende.
Na manhã daquele 25 de janeiro, eu estava na varanda de casa, brincando com meu netinho, quando meu filho mais novo, que mora em Belo Horizonte, me ligou. Ele disse: “Mãe, você tá sabendo o que aconteceu lá na Vale? Liga a televisão pra ver”. Foi assim que descobri. Meu coração gelou. Na hora, lembrei que Thiago tinha dito no dia anterior que iria para Mutuca (outro bairro em Brumadinho). Tentei me convencer de que ele não estava no Córrego do Feijão. Mas ninguém atendia o telefone. Fui ligando para todo mundo. Descobri que ele tinha mudado os planos de última hora para buscar um exame, e por isso acabou ficando no Córrego. O chefe dele me explicou que, ao chegar, pediram que ele ficasse por lá mesmo. Foi assim que ele acabou no lugar errado, na hora errada.
Desde então, tenho vivido com essa dor que nunca vai embora. A saudade do Thiago me corroi todos os dias. A injustiça, também. A Vale é totalmente responsável por isso. Depois do que aconteceu em Mariana, em 2015, não havia desculpa para não ter tomado providências. Mas a ganância falou mais alto. Ignoraram os alertas. Não retiraram os trabalhadores da área de risco. E 272 pessoas pagaram com a vida. É um crime. E os culpados precisam ser punidos.
A resposta das autoridades tem sido frustrante. Os responsáveis já foram condenados, mas continuam soltos. Vivendo suas vidas como se nada tivesse acontecido. E nós, as famílias, seguimos com a dor todos os dias. A justiça precisa acontecer, não só por nós, mas para evitar que outras tragédias como essa se repitam. Sem punição, é como se a vida humana não valesse nada.
Apesar de tudo, encontrei força. Primeiramente, em Deus. Depois, na AVABRUM (Associação de Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem), a associação que criamos com outras famílias de vítimas. Ali, me vi cercada por mulheres tão fortes quanto eu, que decidiram transformar o luto em luta. (No início de maio, Dona Jacira e mais cinco representantes da AVABRUM e do Instituto Cordilheira, que integram o Observatório das Ações Penais sobre a Tragédia em Brumadinho, foram para Brasília para uma série de reuniões em busca de maior engajamento das instituições do sistema de justiça nos processos criminais)
Nosso principal objetivo foi obter um reforço no trabalho das instituições de justiça de Brasília em relação ao caso, incluindo o fortalecimento da equipe dos órgãos de justiça federal em Belo Horizonte, onde tramitam os processos criminais sobre essa tragédia onde perdemos 272 joias. Também recebi apoio da minha família: meu marido, meus filhos, meus amigos. Moro em Betim, mas estou sempre em Brumadinho. Hoje, aquela cidade faz parte de mim. Criamos laços. Lutamos juntas. Compartilhamos a mesma dor e a mesma esperança.
É difícil seguir em frente. Um dia estamos bem, no outro, choramos como se fosse o primeiro. Mas aprendemos a caminhar com a dor. A fé me sustenta. Oro todos os dias. Acredito que Deus tem um propósito. E sigo por mim, pelos meus filhos e pelo Thiago.
O que espero para o futuro? Que haja mais responsabilidade, mais respeito pela vida. Que a ganância não fale mais alto do que o cuidado. Que as empresas não coloquem o lucro acima das pessoas. E que Brumadinho não seja lembrada apenas pela tragédia, mas também pela sua beleza, sua história, suas cachoeiras e pelo povo forte que ali vive.
Eu sigo lutando. Pela memória do Thiago, pelo direito de todas as famílias. Porque enquanto houver injustiça, não teremos paz. E enquanto tivermos voz, não vamos nos calar.”