Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Caminho de volta: a delicada decisão de reverter a transição de gênero

Preconceitos, pressão social e culpa estão entre as razões de um desdobramento percebido em 13% dos transgêneros, segundo estudo de Harvard

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Duda Monteiro de Barros Atualizado em 4 jun 2024, 11h13 - Publicado em 24 mar 2023, 06h00

Às vezes, a sensação de que existe um descompasso entre o sexo biológico e a identidade de gênero ocorre bem cedo na vida e nunca é trivial. É uma descoberta delicada, quase sempre acompanhada de angústia, medo e a face estúpida e inaceitável do preconceito. O fenômeno, que até menos de uma década atrás era considerado uma doença a ser debelada, vem gradativamente deixando o escaninho dos assuntos impronunciáveis e ganhando rosto — 1 milhão de brasileiros e 35 milhões de pessoas mundo afora hoje se classificam como transgêneros, a imensa maioria enveredando pela trilha das transformações no próprio corpo. Como o mundo não para de se abrir à diversidade das manifestações humanas, porém o que se observa agora é uma mudança de rota por uma parte da população trans, que busca o caminho de volta, interrompendo ou mesmo revertendo a transição de gênero — processo já conhecido como “destransição”.

O retorno em uma decisão tão complexa — que pode envolver medicamentos para frear a puberdade, a introdução no organismo de uma batelada de hormônios do sexo oposto e cirurgias que alteram semblante e corpo — é um desdobramento percebido em 13% dos transgêneros, de acordo com um recente levantamento da Escola de Medicina de Harvard. Observados apenas os que engatam em tratamento hormonal, um de cada três larga o processo no meio. As razões elencadas revelam que, embora avanços civilizatórios tenham atenuado a rejeição, ela ainda se faz presente no cotidiano dessas pessoas — tanto assim que cerca de 80% dos “destransicionados” relatam não ter aguentado a elevada pressão no entorno. Outros admitem desconforto não só com a imagem pós-­mudanças, mas também com o novo gênero, desejando retornar ao que eram. Também a culpa é mencionada com fre­quên­cia.

CEDO DEMAIS - Aos 12 anos, a americana Chloe Cole começou sua transição e, aos 15 (à dir), retirou as mamas. Hoje com 18 (à esq.) e “destransicionada”, diz ter sido induzida à mudança por uma clínica, que agora processa
CEDO DEMAIS – Aos 12 anos, a americana Chloe Cole começou sua transição e, aos 15 (à dir), retirou as mamas. Hoje com 18 (à esq.) e “destransicionada”, diz ter sido induzida à mudança por uma clínica, que agora processa (./Arquivo pessoal)

Como há até agora pouco conhecimento acumulado no campo das destransições, faltam estatísticas para melhor mapear o universo, mas sobram depoimentos da classe médica imersa no dia a dia de ambulatórios e salas cirúrgicas. “Cabe ao profissional de saúde facilitar a transição quando o paciente dá sinais de convicção e, ao mesmo tempo, saber freá-la se capta algo mal resolvido, o que nem sempre acontece”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, do Programa de Estudos em Sexualidade da USP. A VEJA, o britânico Rit­chie Harron, 35 anos, conta que consumiu hormônios e se submeteu a uma operação de redesignação sexual, com o qual se identificou por sete anos, não sem altos custos. “A mudança não resolveu minha ansiedade e depressão e acabou por agravá-las”, reconhece ele, que optou pela reversão há dois anos e atualmente se apresenta como um homem gay. “O tratamento psicológico que recebi foi muito ruim, me induzindo à mesa de operação”, avalia.

destransição

Continua após a publicidade

Isso não quer dizer que a trilha da transição não deva ser percorrida, mas sinaliza que o passo adiante jamais pode ser dado sem o amparo de uma equipe multidisciplinar no sentido mais amplo, com endocrinologistas, psiquiatras e psicólogos prontos para emitir uma opinião equilibrada. A ciência ainda procura decifrar o desencontro entre mente e corpo, mas a linha mais aceita envolve alterações cerebrais e hormonais na gravidez que levariam a essa condição, tecnicamente chamada de “disforia de gênero”. Desse modo, a compreensão sobre o próprio gênero não passa por uma escolha pura e simples, mas se baseia em uma característica individual inata — trajeto que costuma envolver sofrimento até tudo se tornar mais claro. Evidentemente, nem todo mundo que vive uma ebulição dessa natureza apresenta tal condição — a insatisfação com o gênero pode ter raízes fincadas em um caldeirão de emoções moldado pelas circunstâncias, configurando uma fase. “É preciso cautela para empreender uma mudança tão significativa “, ressalta Carmita Abdo.

Quando a decisão é tomada precocemente, com o corpo em formação, os riscos de um equívoco aumentam exponencialmente. Nos Estados Unidos, os holofotes estão voltados para o caso de Chloe Cole, que, aos 12 anos, infeliz com a imagem projetada no espelho, concluiu ser trans. Meses mais tarde, começou a tomar blo­quea­­do­res de puberdade e testosterona e, aos 15 anos, tirou as mamas. Não deu um ano, e ela se entendeu novamente como menina. Hoje, com 18 anos, processa a clínica que a tratou, alegando não lhe ter apresentado vias menos drásticas nem provido suporte psi­quiá­tri­co. “Falaram assim para meus pais: ‘Vocês preferem uma filha morta ou um filho vivo?”, lembra Chloe, que reimplantou os mamilos, o que ainda lhe traz incômodo, e virou uma indesejável bandeira nas mãos de ultraconservadores que se alimentam de argumentos reacionários. A inglesa Keira Bell, 23, tornou-­se outro desses símbolos, e sua história, carregada de aflição, se desdobrou em uma mudança concreta. Movido por seu processo, o Supremo Tribunal inglês definiu que menores de 16 anos, idade dela à época, não têm a maturidade requerida para o uso de bloqueadores hormonais. “Me permitiram seguir em frente com as ideias que eu tinha na adolescência, quase uma fantasia”, diz Keira, que se destransicionou.

O GRITO - Manifestação a favor dos direitos trans: uma nuvem de rejeição e desconhecimento ainda paira sobre o grupo
O GRITO - Manifestação a favor dos direitos trans: uma nuvem de rejeição e desconhecimento ainda paira sobre o grupo (Vuk Valcic/SOPA Images/Getty Images)
Continua após a publicidade

No Brasil, a lei permite que a terapia hormonal seja aplicada a partir dos 16 anos, enquanto as cirurgias — como a extração dos órgãos reprodutores e a construção de genitais — podem ser realizadas apenas após os 18 anos. No rol das exigências, consta o monitoramento ao longo do ano que antecede o princípio do processo. Nos Estados Unidos, a lei é menos rígida, ao passo que França, Finlândia e Suécia vêm postergando a permissão de tratamentos hormonais, justamente para que a virada de página se dê em solo mais firme. Mesmo com adultos, porém, a dureza pode se impor. Aos 17 anos, o chileno Nicolás Raveau já se via como mulher, mas aos 37 encarou hormônios e suavizou com bisturi os traços masculinos Eis que ele voltou a se identificar como homem e, há cinco anos, suspendeu os hormônios. As consequências logo vieram. “Perdi muitos amigos trans”, diz Nicolás, que nunca largou o trabalho social com pessoas trans e criou um grupo de apoio para pessoas que destransicionaram.

IDAS E VINDAS - O chileno Nicolás Raveau, 46, deu o passo para a transição aos 37, mas isso só fez acentuar suas angústias e ele abandonou o processo há dois anos, se entendendo no mundo como um homem. “Vivo hoje sem a dura autocrítica de antes”, diz
IDAS E VINDAS – O chileno Nicolás Raveau, 46, deu o passo para a transição aos 37, mas isso só fez acentuar suas angústias e ele abandonou o processo há dois anos, se entendendo no mundo como um homem. “Vivo hoje sem a dura autocrítica de antes”, diz (./Arquivo pessoal)

Como tudo é relativamente novo nesse campo, a medicina ainda está aprendendo como reverter os efeitos da transição. Na área cirúrgica, a ciência atua em caráter experimental e, em sistemas de saúde como o SUS, a volta atrás não está contemplada. A maior parte dos relatos dados a VEJA cita os incômodos da destransição, mas trata em especial das feridas psicológicas. “Me senti fragilizada demais para seguir com a transição. Havia sido expulsa de casa, precisei parar de estudar e dependia de favor para comer”, lembra a potiguar Aylla Devereaux, 21, que havia iniciado o processo aos 12, deu uma pausa seis anos mais tarde e agora, convicta, retomou a transição. Arrepender-se de decisão que mexe tão fundo na definição de quem somos é algo a ser incondicionalmente respeitado, mas em nada ofusca a caminhada de tantos outros, que ganharam vida mais feliz depois de abraçarem o gênero com o qual verdadeiramente se identificam.

Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.