No recente show de Madonna, houve um grande alvoroço porque ela beijou uma mulher trans na boca. Os temas relacionados a gênero e transexualidade estão na ordem do dia. É urgente falar sobre essas vidas que para grande parte das pessoas pouco importam — até o momento em que o filho ou a filha trans revelam que não se sentem à vontade com o próprio corpo. A questão não é sexual, como pensam muitos. Eu conheço um caso de uma pessoa nascida com um corpo masculino que foi casada e teve filho. Mais tarde iniciou uma relação gay com um homem, sólida, a ponto de morarem juntos. Só que não estava feliz com sua identidade. Iniciou o processo de transição, que implica tomar hormônios, intervenções no corpo e novos documentos. O companheiro separou-se com o argumento de que, por ser gay, não queria ficar casado com uma mulher. Uma conhecida minha tem um filho ainda adolescente que está transicionando. As pessoas perguntam a ela: “Como está sua filha?”. Ela responde: “Agora é filho”. Mas esse filho tem atração por homens, portanto, é gay. Ou seja, o gênero com que a pessoa se identifica não necessariamente tem relação com a orientação sexual, por mais que as mães façam esforço para entender, como essa minha amiga. Assim como a maneira com que alguém performa o gênero. Adoro assistir ao programa de Ru Paul, um reality show de drag queens. Teve uma temporada em que uma das drag queens era um homem trans. Deu um nó na minha cabeça, confesso. Fiquei surpreso como esse assunto tem camadas. O gênero não consta nas siglas do LGBTQIAPN+, porque uma coisa não tem nada a ver com outra. (Também não me perguntem o que significa cada letra dessa sigla. Eu, como muita gente, me confundo. Mas entendo sua importância para a criação de políticas públicas e a compreensão de que existem infinitas formas de amar.)
“O país que mais mata pessoas trans é também o que mais consome pornografia trans. Falo do Brasil”
Cada vida importa. Nem todas as vezes essa vida se encaixa dentro de uma normativa. Entretanto, a vulnerabilidade da pessoa trans é gigantesca, numa sociedade em que ainda pouco se tolera a diferença. O país que mais mata pessoas trans no mundo pelo 14º ano consecutivo é também o país que mais consome pornografia trans. É isso mesmo, estou falando do Brasil. Esses dados são uma tragédia. Qual o espaço que uma pessoa trans tem na sociedade? Muitas vezes expulsos/as das próprias casas por falta de compreensão da família, são atirados/as nas ruas. Segundo o relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a expectativa de vida de uma pessoa trans no país é de 35 anos. “Resistir para existir, existir para reagir” é o lema da associação.
Ainda me lembro de Roberta Close, nos anos 1980, dando entrevistas com muita paciência e elegância, simplesmente para dizer que existia. Hoje, com esses dados, entendo a urgência de se criar oportunidades. Há uma deputada federal, Erika Hilton, que assumiu a liderança do PSOL e se tornou a primeira pessoa trans a comandar a bancada do partido na Câmara. Liniker é a primeira artista trans a levar a estatueta do Grammy Latino. Estão pavimentando um caminho e mostrando que, transcendendo a questão de gênero, a pessoa só precisa ter uma oportunidade.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892