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Walcyr Carrasco

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Proteção ou trolagem?

Na nossa era surreal, a IA decide até se somos quem somos

Por Walcyr Carrasco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 17h14 - Publicado em 17 mar 2024, 08h00

Compro um celular novo. Preciso preencher infindáveis formulários digitais, com números, letras maiúsculas e minúsculas, senhas com elevados graus de dificuldade, das quais não me lembrarei depois. Mas não basta. Tenho de provar que eu sou eu, através de reconhecimento facial. Se abro uma conta bancária ou tento entrar na que já tenho, também é preciso mostrar o carão. Nem sempre a IA reconhece. Preciso ficar com o rosto torto, olhar de ângulos diferentes, aproximar ou afastar o celular, tudo isso tirando e colocando os óculos para conferir o que está acontecendo. Nem sempre é fácil. A IA é rigorosa, uma espinha no nariz talvez bloqueie minhas contas. Outro dia, eu e um especialista em finanças ficamos quarenta minutos tentando, mas não conseguimos entrar na minha conta bancária. A IA estava de mau humor, acredito. No dia seguinte, bastou mostrar o rosto umas cinco vezes e ela se convenceu de algo que eu sabia havia muito tempo: que eu sou eu. Mas talvez esteja errado. Outra vez, em um aplicativo de compras, passei um tempão tentando provar que não sou uma máquina. Entre várias imagens, tinha de identificar em qual havia semáforos, depois placas… Deu erro. Fiquei na dúvida se sou de carne e osso, já que não consigo provar isso nem para meu celular. Para entrar em um prédio ou pegar um atalho no aeroporto, o reconhecimento também é facial. E, para pagar as compras, basta sorrir para meu celular, se foi com um sorriso que me cadastrei. Mas, se eu estiver gripado, ou com o rosto inchado, serei expulso de onde quero entrar?

“Cada vez menos humanos e mais robôs cuidam da nossa segurança. É preciso ser gentil com as máquinas”

Quando saio, estremeço ao escolher um cartão de crédito. A segurança digital pode não aceitar que eu pague minhas compras. Se recusa, tenho de ligar para um determinado número, me identificar e responder dados específicos para não ser bloqueado. Penso sempre no que acontecerá se um dia for para o Deserto do Saara e, no reconhecimento de face ID, for bloqueado. Um lifting nas orelhas e terei de fazer tudo de novo! Mas tudo isso funciona? Tenho dúvidas. Hoje em dia até criminosos clonam “pessoas” via IA. Soube de uma história pela internet. Uma aposentada recebeu uma chamada de vídeo em seu celular. Do outro lado era sua filha, que saíra algumas horas antes. Pedia com urgência uma transferência via Pix de 600 reais. A aposentada farejou a vigarice. A filha estava com um blusa diferente daquela com que havia saído, e o depósito era na conta de uma amiga, não dela. Mais: a filha não havia chamado a mãe pelo apelido carinhoso que havia entre elas. A aposentada resolveu perguntar qual era o nome do cachorro. A ligação caiu.

Ou seja, não se pode acreditar totalmente na inteligência artificial, nem na segurança digital. Mas também fico com medo da IA estar me observando. Na verdade, tenho certeza disso. E se ela resolver se vingar? Negar todos os reconhecimentos faciais que eu possa precisar, desaparecer com todas as minhas senhas? Como eu viveria? Há cada vez menos humanos e mais robôs cuidando de nossa segurança. O trato social contemporâneo exige que a gente saiba ser gentil com as máquinas. Ai-ai de quem não for!

Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884

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