E se eu disser que a maioria das pessoas, se não todas, já entrou num esquema de corrupção, por menor que fosse? A palavra tem peso: já se pensa em negociatas, milhões. Uma vez comprei uma pequena adega climatizada. Quando foram entregar, a nota chegou com 30% do valor pago. Não aceitei. Disse que chamaria a polícia caso não me fosse entregue a nota correta. Em meia hora, chegou a nota. É osso ter disposição para brigar todas as vezes que alguém tenta pular a nota. Certa vez, por exemplo, eu estava em um supermercado num bairro chique de São Paulo. Uma senhora à minha frente deu um dinheirinho para o açougueiro, para garantir um pedaço de carne melhor. Eu me senti até enjoado. Tem de corromper até o açougueiro?
E amigo que vem do exterior? Nunca vi alguém declarar uma compra maior. Enfiam tudo na mala e torcem para não ser pegos pela Alfândega na chegada. Mas é honesto fraudar os impostos? Óbvio que não. Só que ninguém se pergunta sobre isso. A mesma pessoa que ataca ferozmente um político bota as roupas de grife compradas no exterior na mala. E acha que tudo bem.
Carta de habilitação? O termo “comprar carta” me acompanha desde adolescente. Nunca comprei. Na minha juventude, fiz exame teórico e prático e passei. Faz um bom tempo. Mas durante toda a vida ouvi falar de esquemas. Para passar no exame de renovação, por exemplo. Eu fiz o curso exigido na época, acordando cedinho, ui, ui, ui. Tive conhecido que até fez piada de mim. Era muito fácil armar um esquema para passar sem aulas. Também é comum alguém indicar outro nome para levar a multa. Assim não ganha os pontos nem tem a carteira cassada. Oferecer caixinha para fiscal de trânsito para evitar multa pesada também é comum. Pela lei, podiam dar voz de prisão ao corruptor.
“A mesma pessoa que ataca um político bota as roupas de grife compradas no exterior na mala”
As pequenas fraudes estão por todo lado. Há quem dê golpe nos planos de saúde, pedindo recibo médico de outra pessoa para tascar o reembolso. Nem todos os médicos aceitam fornecer. Fraudar é uma atividade que começa bem cedo na vida. Quando um aluno cola na prova, é fraude. Muita garota ou rapaz entra em uma loja, vai para o provador, experimenta algumas peças. E troca as etiquetas, para levar a mais cara pelo preço da barata. Quando contam essas fraudes, só provocam risos, não indignação.
Há pequenas corrupções que são até estimuladas. O que me assusta é que as pessoas em geral não veem problema nesses gestos de corrupção. São parte do cotidiano e, aceitos, se tornam um modo de viver.
A gente reclama de políticos enfiados em escândalos. Fala-se muito das quantias roubadas, dos esquemas maiores. Mas eu acredito que a corrupção só acabará quando para nenhum de nós for “normal” estacionar em local proibido. Ou furar uma fila exercendo influência junto a amigos. Qualquer corrupção é corrupção. Não se pode conviver com ela, em qualquer nível. Ou ela continuará como uma doença. Contagia tanto o dia a dia de cada um de nós, ao país como um todo. Dizer não à corrupção é uma tarefa necessária.
Publicado em VEJA de 9 de novembro de 2022, edição nº 2814