Foi-se o tempo do “cliente sempre tem razão”. Sou paciente de um médico há muitos anos. Com a ascensão do digital, as consultas também se tornaram on-line. Marquei a minha. Um dia antes, recebo um recado da secretária, me avisando que o link só estaria disponível quando eu mandasse o recibo de pagamento. Levei um susto, pois sou do tipo que ao longo dos anos não atrasei um centavo. Mas foi assim mesmo: sem provas, sem consulta. Estranhei, até por ser um cliente antigo. Mas um outro me intimou a depositar um cheque caução. Gente! Eu nem tenho mais cheque. A relação on-line é prática, mas explodiu com a confiança mútua. Aquele profissional bonzinho, que me aguardava com um sorriso, agora quer provas. E eu, que nunca deixei conta pendurada, de repente me senti incrivelmente suspeito. Entendo o lado do profissional, porque médicos e dentistas vivem levando canos. Mas um cliente antigo merece o mesmo tratamento de alguém que nem se conhece? Mesmo o novo, não merece uma gentileza, o crédito de que ele pagará a consulta?
Óbvio que no mundo digital acontecem golpes. Mas antes também não havia cheque sem fundo? Golpes? Eu só penso que as pessoas, ainda mais quem procura um serviço, mereciam ser tratadas com mais gentileza — que falta faz neste mundo. Mas eu nem boto culpa no profissional somente. É um protocolo que se impôs, incluindo assistentes, secretárias. O interessante é que os grandes médicos e hospitais agem de forma oposta. Recentemente fui operado com urgência (problema ortopédico). Quando perguntei ao cirurgião “afinal, quanto seria?”, ele respondeu: “Depois a gente vê”. Nada mais gentil, mesmo porque os grandes cirurgiões raramente aceitam planos de saúde. Eu não dei o calote, óbvio. Mas me senti confortável pela atitude amigável e solidária.
“Não nego, é mais fácil dar um golpe pela internet. Mas o mais lindo é superar tudo isso, em prol de valores mais sábios”
Há muito tempo reflito como estamos perdendo os mínimos traços de gentileza. Não é questão de dinheiro, propriamente. Mas de estender a mão na hora certa. É justo tratar um ser humano, muitas vezes um velho conhecido como eu, como alguém prestes a dar um golpe e fugir com o rolo de esparadrapo?
Eu sei que há gente que dá calote, sim. Mas vou contar um segredo: caloteiro, quando quer, apronta das formas mais inesperadas. Agora, nós cidadãos comuns queremos só isso: ser tratados como cidadãos comuns. Eu gosto muito da ideia de que a confiança é a base para o trabalho comunitário, para a vida em conjunto. Quantas vezes no passado já saí de uma loja para pagar depois? Se hoje eu falar nisso é capaz de chamarem a polícia.
O mundo digital é uma evolução. Não nego, é mais fácil dar um golpe pela internet. Mas o mais lindo é superar tudo isso, em prol de valores mais sábios.
Há safados, sim, há! Mas o que mais importa são nossos valores íntimos, nossa capacidade de acreditar que a vida em sociedade é possível sem tanta desconfiança.
Fala-se muito que gentileza gera gentileza. Mais que tudo, faz florescer um mundo melhor.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858