Muitas pessoas já escreveram memórias. Quando são figuras conhecidas, sempre me espanto. Raramente correspondem aos fatos que conheço. Mas também o que sei pode não ser. Quando eu penso em meu passado, alinhavo acontecimentos e emoções. As datas, sim, elas existiram. Sei, por exemplo, que fiz 7 anos um dia. Quando narro a mim mesmo, suponho que foi um momento feliz. Uma vozinha interior me recorda que não era bem assim. Nasci em dezembro. Sempre ouvia: “Você vai ganhar só um presentinho, no Natal terá um presente melhor”. Eu me revoltava. Que tinha a ver Natal com aniversário? Invejava os garotos nascidos em março, junho, que ganhavam dois presentes bons por ano. Houve também almoços incríveis de Natal na casa de minha avó — uma espanhola que servia até cabritos. Lembro da minha vocação, quando criança, de recitar poesias nas datas festivas. Todas de meu próprio punho. A família aplaudia e me incentivava.
“Não costumo ler livros de memórias. São, em geral, uma fantasia que a pessoa criou sobre si mesma”
Agora, à distância, penso que eu era uma criança chata. Atrapalhava as festas para recitar versos horrendos para uma plateia de pais, avós e parentes que não se importavam com poesia. Gostavam mesmo é de ouvir meu irmão mais velho, Airton, tocar Luar do Sertão no acordeão. A memória me engana, quando lembro dos aplausos. Eu ficava felicíssimo, mas imagino que era só uma maneira de agradar a uma criança metida a poeta e, ainda mais, exibida. Mas na memória dos parentes eu era talentoso, desde menino. Do primeiro beijo, todo mundo se lembra com emoção. Uma amiga me confessou que seu primeiro tinha gosto de bife. Nem vou falar de outras primeiras coisas. Costumam ser uma decepção. Ui! Ui! Mas que a gente guarda no cofrinho das lembranças como um momento significativo, único. Sinceridade? Ao lembrar da própria vida a gente mente, dando colorido a experiências decepcionantes e pouca importância ao que talvez tenha mudado nossa vida.
Não costumo ler livros de memórias. São, em geral, uma fantasia que a pessoa criou sobre si mesma. Mas o que é a vida, afinal? A vida de que se lembra é esse conjunto de narrativas, contadas para nós mesmos. Conjunto auxiliado por outras narrativas de parentes e amigos, filtradas pela simpatia, pelo mau humor e por sentimentos de todo tipo. Às vezes, alguém comenta de uma conversa importante comigo, que foi fundamental para sua vida. Já aconteceu de eu nem recordar que conversa foi. Não quero parecer amargo, mas o que tem importância na narrativa íntima de alguém pode não ter nenhuma para outra pessoa.
A vida de alguém é um conjunto de narrativas pessoais. Mas onde está a verdade? Sinceramente, acho que essa verdade não existe. A experiência de cada um é diferente da do outro. Talvez os aplausos dados ao menino que recitava tenham me estimulado a escrever, sempre! Para quem ouvia, a lembrança desses versos pode ser um martírio. Só de uma coisa tenho certeza. A vida que conhecemos é uma obra de ficção criada pela gente mesmo. Memórias, o que são? A vida como ela não é.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824