Eu a conheço desde criança. Juntos, nós atravessamos os anos 1970, em rebelião. Se na igreja fumar era pecado, imagine como eram tratadas as drogas, mesmo leves. Tudo era proibido. Todos éramos a favor da liberação. Eu até experimentei, mas nunca incorporei o uso até de bebidas alcoólicas. Os benefícios da Cannabis são muitos, é inegável, inclusive do ponto de vista medicinal. O uso recreativo é aprovado em vários países. Mas o filho dela partiu para o mesclado e, mais tarde, o crack. O ex-marido não quer saber, mas ela continuou com o garoto, nutrindo, cuidando. Quando a palavra “dependência química” entrou na sua vida, ela aceitou com o coração apertado. Aposentou-se, a filha casou, e mora até hoje em uma casinha simples, em São Paulo. Já o garoto parou de estudar. Emprego, arrumou um ou outro, mas não ficou. Todos os parentes aconselham: não devia dar dinheiro, devia botar pra fora de casa. Mas que fazer? Ela o ama.
Há alguns anos, os irmãos dela limparam a casa, jogaram fora os alimentos estragados, surpresos. Justo ela, que, por ser mais velha, foi quase mãe de vários, muito cuidadosa. Ninguém entendeu, como tudo isso estava acontecendo? Agora, a crise explodiu. O filho tomou seu cartão, e gasta tudo que pode (e não pode). Falta comida. A casa está imunda, a geladeira cheira mal. Ela, com problemas nas pernas, mal consegue andar. Desconfia-se que o filho a espanca, quando quer dinheiro. Ele a prende em casa. Vende objetos, faz exigências. Ela se arrasta até o fogão e ainda prepara o almoço.
“Sou liberal, mas também reconheço que existem vícios que se apoderam de uma pessoa”
A irmã mais nova, que tem uma situação estável, foi ela mesma, com uma faxineira, limpar a casa. Os outros irmãos, mobilizados, queriam botar o filho na rua. Ameaçaram até chamar a polícia. Mas ela implorou que não. Nunca. Botar o filho fora de casa não, não. Esconder o cartão? Não adianta, não dizer a senha? Trancada em casa, que condição tem de impor alguma ordem? A solução seria mesmo ir morar com a filha, botar o meliante na rua, alugar a casa. Viver do aluguel e da aposentadoria. Toda família, desesperada, quer uma solução.
Menos ela. Irrita-se quando, segundo diz, “tentam se intrometer”. É a vida dela e de seu garoto (hoje, um homem maduro). Principalmente, se criticam o filho. “Não é culpa dele, é dependente.” Ele a impede até de sair de casa. Ela prefere continuar assim, refém. Por amor.
Sou liberal, mas também reconheço que existem vícios que se apoderam de uma pessoa. Se há anos alguém me dissesse que aquele garoto simpático ia se transformar em um monstro, eu ficaria revoltado. Ainda acho que o uso recreativo de, por exemplo, Cannabis, deveria ser liberado. Mas o vício é outra coisa. O problema é a linha tênue que às vezes separa uma coisa da outra, levando a um território sem lei — e até mesmo sem compaixão.
Sinceramente, nem sei o que dizer, nem que solução apontar. No caso dela, só o tempo. Um dia, refém, ela partirá feliz, sentindo que foi uma boa mãe. Nos lábios, um sorriso de amor para o filho que a capturou.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844