Bastam-me os livros, basta-me a minha biblioteca
Sobre os objetos de conforto na vida do imigrante e o verdadeiro sentir-se em casa alhures

A francesa levou junto uma crepeira. Lembro dos gestos que ela fez para me explicar como foi difícil fazer caber na mala já completamente entulhada.
O boliviano não teve dúvidas: pegou a esfrangalhada Bíblia de estimação, presente da mãe.
Para a chinesa foi mais simples porque o item era dobrável. Ela colocou no meio das roupas da bagagem o jaleco branco que usava em seu trabalho no hospital de Xiamen.
O haitiano carregou com carinho o bonito relógio que havia sido presente de sua namorada e, graças à decisão de jamais ajustar nele o fuso horário, olhava para a hora que era a mesma hora que ela vivia lá longe, olhava para a hora e matava as saudades de seu jeito, porque sabia que ambos estavam na mesma hora, ajustados no sentimento.
Já o americano decidiu por potes e potes de creme de amendoim — não, juro que não quero reforçar nenhum estereótipo; conto aqui a mais pura verdade.
Jornalistas gostamos de materializar as ideias com imagens, cenas, concretudes, e isto talvez seja um resquício das aulas de semiótica da faculdade. Não são, corrijo-me aqui. Tem a ver com a prática da contação de histórias, é algo que já faz parte da natureza de narrações desde sempre, desde muito antes. A Torá está aí para provar, como também As Mil e Uma Noites, A Epopeia de Gilgamesh, a Ilíada, a Odisseia… As aulas de semiótica só vieram para explicar o inexplicável — e, principalmente, inexplicar o explicável.
Quando fui incumbido da minha última reportagem em solo brasileiro — que, coincidentemente, falava sobre estrangeiros que haviam adotado o Brasil —, criei uma regrinha de perguntar a cada um dos personagens entrevistados qual era o objeto escolhido para carregar na mala, na hora da mudança, que tinha o maior apelo nostálgico, o gosto da terra natal, o cheiro da saudade, a cor das origens.
Sete anos depois, estou eu aqui bancando o exótico na terra dos outros, de vez em quando vestindo a camisa do Palmeiras no meio de gente que não liga para futebol, provavelmente nunca viu um jogo do Palmeiras, não sabe quanto acabou a partida de ontem à noite, não vai me fazer nenhuma piadinha ou dar um tapinha nas costas falando “e o parmera, hein!?”.
Qual objeto escolhi para trazer dentro das duas malas de 32 quilos que tinha direito quando embarquei em Guarulhos em um voo que chegaria a Roma horas depois? Qual foi o item sentimental que, a exemplo dos meus entrevistados de pouco tempo antes, eu havia selecionado como se fosse um pedaço desentranhado de minhas raízes taquaritubenses também cultivadas em Bauru, em São Paulo, enfim, no Brasil de forma geral, se houvesse Brasil de forma geral?
Não me lembro. Não houve. Não pensei nisso.
Dá um vazio tremendo, eu sei.
No dia em que eu vim-me embora, como canta Caetano, não teve nada de mais.
Mas eu deixei do meu lado original do Atlântico um pedaço de mim, uma coisa que não caberia em duas malas de 32 quilos mas se fizeram como parte amalgamada à minha existência: uma coleção de livros, minha biblioteca particular.
O processo foi doloroso. Eram quase 3 mil volumes em uma bela estante sinuosa e assimétrica projetada cuidadosamente pelo arquiteto Henrique de Carvalho. Uma obra de arte.
A primeira missão, iniciada alguns meses antes da partida, era reduzir ao máximo esse número. Presenteei alguns amigos com títulos que com eles tinham a ver — o próprio Henrique herdou praticamente todos os meus livros de arquitetura, exceto aqueles pelos quais nutria um apreço transcendental, como os do hoje saudoso Benedito Lima de Toledo.
Foram cinco anos longe dos meus livros até o sonhado reencontro
Parte da coleção acabou sendo absorvida por sebos de Pinheiros. Espero sinceramente que hoje estes meus ex-livros estejam fazendo a felicidade de alguns novos leitores.
No fim, juntei os cerca de mil e quinhentos remanescentes em caixas, 64 caixas. Ainda tenho o arquivo ponto doc com as anotações que indicavam quais estavam em qual delas. Por exemplo, a caixa de número 19 acondicionou os livros do nicho 11 de minha estante, aquele que se chamava Ziraldo — na minha organização bibliotecária, cada pedaço homenageava um autor. A caixa 20 tinha os livros do nicho 29, de nome Paulo Leminski, acrescidos da coleção das obras do Stephen King, autor de predileção da Mariana. Minha hemeroteca ficou guardadinha em três caixas, a 1, a 2 e a 3. Na 7 botei os livros que ainda não haviam sido organizados, portanto não pertenciam a nicho algum — era o caos metamorfoseado em biblioteca.
De fevereiro de 2018 a abril de 2023, toda vez que me lembrava dos meus últimos entrevistados em solo brasileiro com seus objetos de conforto, só pensava em meus livros. Agradecia mentalmente a meus pais, por terem topado reservar um espaço considerável da casa deles para que essas páginas repousassem, amarelecendo, na esperança de um dia voltarem a ser folheadas por um ávido leitor, quem sabe viajarem o mundo e se tornarem raros exemplares em língua portuguesa em um paisinho minúsculo do leste europeu, tornarem a ser orgulhosamente exibidas em uma bonita estante, respirando o ar que não está mais confinado em uma caixa de papelão.
Às vezes sonhava com um contêiner em um grande navio. Noutras pensava em malas cheias que pudessem voar até mim. Meus livros são meus objetos de conforto — o problema é que são muitos. A língua portuguesa em sua variante brasileira, materializada em páginas de papel, tácteis, é o meu objeto de conforto — mas isto é raro demais por aqui.
Em abril de 2023, with a little help from my friends, na verdade ajudas grandiosas de impagáveis amigos, pude abrir as mesmas caixas lacrimejantes lacradas cinco anos antes.
Estes livros que me rodeiam e me aconchegam agora enquanto trabalho significam minhas raízes, algumas completamente funcionais e em crescimento, outras apodrecidas pelo tempo. Viajaram o mundo para me reencontrar.
Ao olhar para eles, eu me sinto como em São Paulo me disseram se sentir a francesa ao usar sua crepeira, o boliviano lendo a Bíblia ou o americano raspando a lata do creme de amendoim favorito.
Eu me sinto em casa.
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