Mais um brasileiro perdido no mundo
Direto da Eslovênia (não da Eslováquia, nem da Estônia), lembranças do dia em que dividi o banheiro com um escritor famoso na Bienal do Livro de São Paulo
Dentre as pouquíssimas coisas que tenho em comum com o escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) está uma inusitada ocorrência: já dividimos o mesmo banheiro.
Foi às 13h22 do dia 29 de abril de 2000, no Expo Center Norte, em São Paulo. Eu usava um crachá onde se lia a palavra AUTOR, assim mesmo, em caixa alta. Usava, não. Exibia. Tinha 15 anos e estava lançando meu quase desconhecido primeiro livro em um dos muitos estandes da Bienal.
Ubaldo já era o Ubaldo — portanto, uma das principais estrelas do evento.
O crachá de autor nos dava alguns poucos benefícios, tais como entrar na Bienal sem pagar ingresso e usar banheiros restritos à categoria.
Reconheci Ubaldo pela proeminente calvície. Resignei-me a não abordá-lo naquele íntimo momento. Ele usou o lavatório ao lado do meu e, de canto de olho, vi que, atento ao espelho, deu uma ajeitadinha no bigode antes de se virar e ir embora. Em e-mail que trocamos dias depois, o escritor me corrigiu sobre sua alopecia. “É uma leve calva”, subestimou, deixando-me pensativo se ele não andava precisando ajustar o grau dos óculos.
A segunda coisa coincidente que tenho com ele é, de certa forma, a causa desse esquisito encontro toalético: ambos vivemos de escrever. Semelhança esta, cumpre destacar, que para na primeira vírgula — ou em um ponto e vírgula, este que Ubaldo insistia não saber usar: ele foi um gigante das letras, escreveu obras que seguirão sendo lidas enquanto houver Língua Portuguesa; eu sou este escrevedor de perecibilidades, fazedor do jornalismo que só é consumido até o próximo clique cativar a atenção da audiência.
Mas é a terceira tangência entre Ubaldo e Veiga que motiva estas linhas. Tanto ele quanto eu, em dado momento da vida, nos tornamos estrangeiros.
Brasileiros morando fora.
Nos dias de hoje, um fenômeno, uma enormidade. Em uma série de reportagens que publiquei há uns dois anos na Deutsche Welle, identifiquei personagens e contei histórias dessa época de brasileiros espalhados pelo mundo. Com o aval de alguns especialistas, chamei o que estamos vivendo de “maior diáspora brasileira da história”.
Desconfio que não haja nenhum país do mundo hoje em que não viva pelo menos um brasileirinho sorridente
Oficialmente, já beiramos os 5 milhões. Desconfio que não haja nenhum país do mundo hoje em que não viva pelo menos um brasileirinho sorridente achando que sua grama é mais verde do que aquela que viceja nos campos de futebol localizados entre o Oiapoque e o Chuí.
Somos imigrantes. Uma palavra que vem carregada de peso político, social, econômico e cultural impressionante, dado que vivemos a mais intensa crise migratória da era humana.
Neste espaço que inauguro aqui pretendo contar as delícias e as agruras de ser imigrante. Quando morava no Brasil, sempre tive amigos estrangeiros. Por isso, confesso que ainda me espanto quando acordo e penso: “caramba, agora o gringo sou eu!”.
Vivo fora do Brasil desde fevereiro de 2018. Passei uma temporada na Itália e já faz mais de cinco anos que estou na Eslovênia. (Não, não é Eslováquia. Nem Estônia. Obrigado.)
Nesse período todo, venho colecionando algumas experiências que, imagino, são comuns a esses milhões de brasileiros espalhados pelo mundo. Imigrantes como eu.
Outras devem ser peculiaridades porque inerentes à minha personalidade atrapalhada ou características de um paisinho pequeno como o que escolhi para viver, dono de uma rica e complexa história milenar mas, ao mesmo tempo, tão jovem como república independente — existe como país apenas desde 1991.
Seria descabida pretensão imaginar que meus relatos de alguma forma são inspirados no que fez Ubaldo em sua temporada alemã, quando publicou crônicas periódicas no Frankfurter Rundschau. Mas confesso que minha primeira lição de casa depois que acertei com o pessoal da VEJA foi pegar em uma estante meu surrado exemplar de Um Brasileiro em Berlim, a coletânea dos textos feitos por João Ubaldo Ribeiro sobre suas experiências como estrangeiro.
Ao menos no fato de serem letras escritas sobre fundo branco, vá lá, agora tenho mais uma coisa em comum com o famoso escritor baiano.
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