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Música sem preconceito: de Beethoven a Pablo do arrocha, de Elis Regina a Slayer

Um sonhador em tempos difíceis

Carlos Eduardo Miranda, morto na quinta-feira, era uma figura rara: engraçado, generoso e educado, mas acima de tudo um apaixonado pela música que fazia

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 23 mar 2018, 19h39 - Publicado em 23 mar 2018, 17h28

Faz dois anos desde que vi Carlos Eduardo Miranda, ou melhor, Miranda, ou melhor, o Veinho, pela última vez. Eu tinha ido assistir a um documentário no cinema com meu filho e na volta parei para comer um lanche na pizzaria Real. E lá estava ele, sempre de bom humor, naquela mistura de anedotas, casos do rock nacional e declarações de amor a uma banda ou cantor que acabara de descobrir. Nos despedimos, ficamos de marcar algo, mas nunca voltamos a nos encontrar. Os contatos ficaram restritos a trocas de mensagens no Facebook, que acabaram interrompidas por essas desavenças infantis de gente supostamente grande. Mas nunca deixei de reconhecer a importância que Miranda teve na minha formação como jornalista musical.

Carlos Eduardo Miranda foi o primeiro jornalista a mostrar que o cenário pop nacional ia muito além de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília – que entrou em voga nos anos 80 por causa de bandas como Legião Urbana e Capital Inicial. Ele apoiou, com entusiasmo, bandas mineiras como Skank e Pato Fu, o manguebit pernambucano e as bandas do sul do país. Quando eu entrei na BIZZ, em dezembro de 1993, Miranda me mostrou como fazia para sempre se manter antenado – afinal, estávamos em tempos pré-internet. O segredo era manter uma rede fiel de informantes, que vez ou outra passavam notícias dos destaques de seu rincão ou até mesmo colaboravam com matérias. Carlos Marcelo, de Brasília, escreveu sobre o rap candango e apresentou o Maskavo Roots, que tinha acabado de assinar com o Banguela, selo que Miranda dirigiu ao lado dos Titãs.

Marcelo Ferla, gaúcho de Porto Alegre, contou maravilhas sobre o Ultramen, José Teles alertava sobre a geração posterior à de Chico Science & Nação Zumbi e o baiano Hagamenon Brito ia de Dr. Cascadura, uma banda de rock estilo anos 70, à transformação de Tatau, vocalista do Ara Ketu, um símbolo sexual do carnaval baiano. Todos são meus amigos até hoje, com graus variáveis de intimidade, e são informantes fiéis do que acontece no cenário de seus estados – e me são úteis em minhas apurações jornalísticas.

Miranda lançava aquilo em que acreditava. As histórias de suas recusas são lendárias: na época do Banguela, selo que criou ao lado do grupo paulistano Titãs, no fim de 1993, teria dito “não” a Mamonas Assassinas e Charlie Brown Jr. Uma falta de pragmatismo (afinal, os dois se tornaram campeões em vendas) que poderia classificá-lo como um executivo incompetente. Por outro lado, a paixão o fez apostar nos Raimundos, grupo que uniu o hardcore ao forró e se tornou um dos maiores destaques da cena roqueira daquele período; o mundo livre s/a, que atualizou o suingue de Jorge Ben Jor para as novas gerações; o Little Quail, que mais tarde desembocaria no Autoramas, banda liderada pelo guitarrista e vocalista Gabriel Thomaz; o Maskavo Roots, grupo de reggae vindo de Brasília e que até hoje eu quebro a cabeça em tentar descobrir por que não se tornou um sucesso nacional; o Graforreia Xilarmônica, banda de Porto Alegre liderada pelo ótimo cantor e guitarrista Frank Jorge (que um dia Fernanda Takai, do Pato Fu, definiu exemplarmente como “o Roberto e o Erasmo Carlos na mesma pessoa”)…

Sim, a lista é longa e me perdoem se eu cometo uma ou outra omissão. Mas ainda estou em choque com a passagem de Miranda. E quando ele tinha em mãos um produto no qual acreditava demais – o que basicamente foi tudo o que lançou –, o Veio tentava te vender com o ímpeto de um mercador de tapetes do Grand Bazaar. Tocava o CD demo (ou a fita, dependendo do período), cantava junto, criava um factual para vender a pauta… Às vezes, tenho de admitir, não colava. Certa feita, pediu que eu escutasse com atenção um grupo de Brasília cujo disco ele tinha acabado de produzir. Falou que havia botado os meninos para escutar bandas de pop adulto como Steely Dan e Doobie Brothers e cujo resultado eu iria perceber de cara. Não gostei do disco, mas tive de admitir que a produção dele tinha dado um outro clima para a banda. Miranda é erroneamente identificado com a cena rock, que ele sempre adorou, mas sabia trabalhar com artistas mais delicados. Um deles foi Zé Manuel, pianista e cantor pernambucano, que fez um dos trabalhos mais bonitos da história recente da música brasileira.

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Com Miranda, foi-se por terra o mito de o jornalista ser uma figura inacessível. Era cordial, engraçado e nunca se envergonhou dos perrengues pelos quais passou. Uma das minhas histórias prediletas sobre Miranda é aquela em que, duríssimo, ele visitava todo dia a redação da BIZZ na hora do almoço porque não tinha dinheiro para comer – e assim filava a boia do dia. Quando ia a festivais, shows ou eventos relacionados com música, ele sempre tinha a disposição de atender a tudo e a todos. Nunca o vi ser grosseiro com nenhuma banda ou cantor que fosse, mesmo aqueles de cujo som assumidamente não gostava. E talvez pelo seu passado de perrengue, nunca deixou de apoiar e recomendar jornalistas em início de carreira. No mínimo batia um papo para contar do que estava acontecendo no pulsante cenário do pop/rock nacional do início dos anos 90. Certo dia, ele me encontrou numa lanchonete na Rua dos Pinheiros e discorreu sobre o acidente de Fred, então baterista dos Raimundos, que teve de operar a cabeça por causa de um stage dive mal planejado. Em tempos de BIZZ, ele pediu que déssemos uma chance ao então iniciante Emerson Gasperin, o Tomate, que tinha acabado de chegar de Santa Catarina e estava à procura de emprego. A gente deu e tempos depois ele comandaria uma das melhores editorias da BIZZ ao lado do meu amigo José Flávio Jr. e de Roberto Morgan, um produtor gráfico e nosso ombudsman informal.

Há cerca de cinco anos, eu e Miranda participamos da seleção de bandas para um festival de música em Belo Horizonte. Ele respirava com dificuldade e seus passos eram incertos. Comentei, com certa preocupação, sobre o estado de saúde de Miranda com alguns amigos próximos. Tempos depois, falei com o próprio Miranda da necessidade de se cuidar mais. Ele concordou e disse que tomaria essa atitude porque tinha acabado de ser pai e queria muito ver sua filha crescer. Nas notícias que li sobre Miranda, descobri que fazia um tempo que estava de cama. Uma pena. A despeito de qualquer briga que a gente tenha tido, qualquer desavença que possa ter nos separado, Miranda era uma joia rara. Um sujeito apaixonado em meio a um mercado cínico. O Veio vai fazer falta.

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