O dia em que eu fiz um exorcismo com Zé do Caixão
José Mojica Marins utilizou seu personagem mais famoso para acalmar os defuntos de um cemitério de São Paulo


Zé do Caixão, Zé Ramalho e Xuxa Lopes, fotografia do Disco “Zé Ramalho 2″ ou “A Peleja do Diabo Com o Dono do Céu”, de Zé Ramalho.
José Mojica Marins, o criador do Zé do Caixão e tema da série do canal de TV a cabo Space
O canal de TV paga Space está exibindo Zé do Caixão. Baseada no livro Maldito, dos jornalistas Ivan Finotti e André Barcinski (que também é autor do roteiro), ela conta a trajetória de José Mojica Marins, paulistano da Vila Mariana, que um dia criou um dos maiores personagens do terror mundial. Matheus Nachtergale está estupendo na pele do Mojica, com todos os exatamiente e perfeitamiente aos quais tem direito. O seriado me fez ainda recordar dos tempos em que eu era repórter do jornal Notícias Populares no início dos anos 1990. Certo dia, foi noticiado de que os peões que trabalhavam na obra da estação Clínicas (linha 2, verde do metrô) haviam se deparado com um grupo de fantasmas. Segundo relatos fantasiosos, as almas penadas que moravam no cemitério do Araçá, que foi parcialmente remodelado para a construção de uma das saídas do metrô, não gostaram muito de ter seu descanso final interrompido. O protesto escolhido, então, foi dar pequenos sustos nos pobres funcionários da obra.
José Mojica Marins era figura carimbada na redação do Notícias Populares. Ele aparecia para divulgar os espetáculos do seu teatro, que ficava na avenida São João (perto do metrô Santa Cecília) ou então sugeria pautas que pudesse ser protagonizadas pelo Zé do Caixão. Foi aqui um editor, cujo nome eu não me recordo, sugeriu que o Zé fizesse um ritual de exorcismo para acalmar os defuntos do cemitério do Araçá. A reportagem teria de ser feita num sábado à tarde, dia de folga dos funcionários da construção (e pensando bem, eles se assustariam ainda mais com a presença do Zé do Caixão no meio dos túmulos). O escolhido para essas pautas, digamos, criativas, é sempre repórter iniciante. E como eu tinha poucos meses de Notícias Populares, fui escalado para a missão.
O ritual de exorcismo até que foi bem simples. Mojica postava diante de uma campa e gritava: “Cheeeeeega!”. Depois, bandeava-se para um mausoléu qualquer e urrava: “Paaaaarem!” O ponto alto foi quando ele se postou em cima de uma tumba com um crucifixo em cima e mandou: “Deixem os pobres meninos trabalharem em paz!” Logo após essa meia dúzia de palavras de ordem, devidamente registradas pelo fotógrafo do jornal, eu perguntei ao Zé do Caixão qual o motivo de tanta revolta dos espíritos contra os pobres funcionários da construção. “Eles ficam assustados com tanto barulho e usaram a única forma de expressão que conhecem”, disse. Terminado o ritual, eu disse ao Mojica que era muito fã de A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, disco que o violeiro, cantor e compositor Zé Ramalho lançou em 1981, e que trazia Zé do Caixão e a atriz Xuxa Lopes na capa. Foi aí que Mojica fez a revelação mais saborosa daquela tarde. Logo após o lançamento do álbum, Ramalho se separou da mulher, a também cantora Amelinha. E como não tinha lugar onde morar, Mojica humildemente ofereceu sua casa para que o violeiro passasse alguns dias até se arranjar. Mojica, contudo, não sabia que o autor de Admirável Gado Novo era sonâmbulo. E todas as noites Ramalho passeava pelos cômodos do lar do Zé do Caixão. Certa noite, o rei do terror brasileiro abriu os olhos e se deparou com Zé Ramalho, olhos esbugalhados, barba grande e cabeleira farta, olhando fixamente para ele, Mojica. No dia seguinte, o cineasta pediu humildemente para que o violeiro encontrasse outro lugar para morar.
Mojica continuou frequentando o Notícias Populares. Lançou sua filha, Liz Vamp, como sua sucessora no reinado do terror, anunciou sua noiva, lamentou o dia em que um caminhão destruiu sua casa, fez propaganda de seu serviço de histórias macabras por telefone, divulgou que finalmente iria cortar suas longuíssimas unhas… Ele até fez uma cobertura de Fórmula 1 (uma estratégia criada com sucesso pelo jornal, que também utilizou João Gordo como repórter). Não se sabe, contudo, que algum dia ele tenha hospedado Zé Ramalho novamente em sua casa. Foi o único personagem que Zé do Caixão não conseguiu dominar.