Astro do reggae, Max Romeo canta a trilha de um país dividido
O jamaicano apresenta em São Paulo as pedradas de 'War Ina Babylon', álbum lançado num período turbulento da política e da economia do país caribenho
“Se o Brasil é assim, imagine a Jamaica”, cantava a turma do Casseta & Planeta em Tributo a Bob Marley. O Brasil de 1976 estava sufocado pelo regime militar, mas a ilha caribenha passava por um clima de guerra. Tudo por causa do embate entre os principais partidos políticos do país. O People’s National Party (Partido Nacional do Povo, em português), do socialista Michael Manley, que assumiu o poder em 1972, e o Jamaican Labour Party (Partido Trabalhista Jamaicano), de Edward Seaga. Os dois, embora se utilizassem da música como um meio efetivo de ganhar votos, tinham visões políticas totalmente opostas. Manley, que se valeu da filosofia rastafári (dizia-se que ele brandia um cajado, dizendo que era de Josué, o sucessor de Moisés no comando dos hebreus), tinha tendências esquerdistas. Já Seaga bancou as produções de pioneiros do pop jamaicano como o cantor Joe Higgs e o guitarrista Byron Lee, e estava tão à direita de seu oponente que havia suspeitas que ele fosse um aliado da CIA, o tenebroso serviço secreto americano. O embate entre os cabos eleitorais desses partidos resultou num banho de sangue e a situação belicosa foi retratada de modo exemplar pelos astros do reggae, gênero que o cantor Jimmy Cliff batizou certa vez de “o jornal do gueto”. Bob Marley soltou Rastaman Vibration, disco que se alternava entre canções pop e políticas, e Peter Tosh se lançou em carreira solo com Legalize It, que pedia a liberação da maconha e protestava contra a violência policial. Nenhuma dessas obras-primas, no entanto, se compara a War Ina Babylon, de Max Romeo que o cantor apresenta na íntegra nessa sexta na Fabrique, em São Paulo (https://www.sympla.com.br/jamboree-com-max-romeo—direto-da-jamaica-unico-show-em-sp__665322). Romeo será acompanhado pela competente banda Leões de Israel.
War Ina Babylon é um retrato da situação do país, que passava por uma de suas piores crises sociais: a riqueza estava concentrada na mão de 5% da população, a taxa de analfabetismo entre os menores de 15 anos batia os 50% e 20 000 jamaicanos migravam todo ano para os Estados Unidos e para o Canadá em busca de melhores oportunidades de trabalho. O gueto reagiu à situação com violência – houve um aumento na criminalidade – e na forma de música. Maxwell Livingston Smith, o Max Romeo, foi uma dessas pessoas. Nascido em St. Ann, mesma cidade de Bob Marley, ele trabalhava como cortador de cana até que, aos 18 anos, venceu um concurso de calouros local. Romeo mudou-se para a capital, Kingston, onde tentou o sucesso como integrante do grupo vocal The Emotions. De 1965 a 1968, o trio nunca despontou como uma grande promessa da música jamaicana. Romeo então seguiu carreira solo e emplacou Wet Dream, uma canção de cunho malicioso e que rendeu uma desculpa muito da esfarrapada. O tal “sonho molhado”, alega Romeo, nasceu de uma goteira no seu quarto e não de um pensamento libidinoso.
A mudança de rumos musicais do cantor se deu com a chegada do reggae da filosofia rastafari. Uma mistura pouco ortodoxa de judaísmo, cristianismo e seitas locais, ela se uniu ao novo ritmo, embora nem todo artista se declarasse rasta. Os cocurutos decorados com longas traças, o consumo de maconha e a desobediência civil (eles chamam a civilização de Babilônia, numa comparação à decadente cidade da Mesopotâmia) fez com que eles entrassem imediatamente na mira da polícia. Não eram raros confrontos e situações em que os astros do reggae saíram machucados após um encontro com a lei – Tosh, por exemplo, teve sua mão esmigalhada ao ser flagrado com um cigarro de maconha. Max Romeo uniu sua devoção a Jah, o deus dos rastas, ao protesto político. Sua canção Let the Power Fall, de 1972, foi usada como jingle de campanha de Michael Manley ao poder. Quatro anos depois, com Manley eleito e ao lado do produtor Lee Perry, o cantor via com tristeza a situação de desamparo que tomou conta do país. A faixa-título, por exemplo, fala não só das brigas políticas entre os agregados de Manley e Seaga como fazia uma crítica à violência policial; One Step Foward, outra faixa de impacto do álbum, colocava o cidadão jamaicano na parede – afinal, o sujeito estaria do lado do “bem” ou seria um “crazy baldhead”, como os rastas se referiam aos jamaicanos que se renderam ao sistema? A produção de Lee Perry é primorosa e moderna – tanto que I Chase the Devil seria adaptada pelo grupo inglês de música eletrônica Prodigy (virou Out of Space). War Ina Babylon é uma obra essencial, tema de um país dividido pela política, com uma situação econômica e social periclitante. Pensando bem, não é preciso imaginar a Jamaica. Porque o Brasil de hoje tem muito a ver com a ilha caribenha em 1976.