‘Os norte-americanos acham que somos pacíficos’
Artista plástica Kenia Maria, premiada na ONU, fala a VEJA sobre racismo e artes

A artista plástica Kenia Maria, destaque em premiação da ONU que homenageia anualmente os afrodescendentes mais influentes do mundo, tem um novo desafio pela frente. A convite de Bethânia Nascimento, afro-brasileira a se tornar a primeira bailarina em uma companhia de balé internacional, e filha da ativista Maria Beatriz Nascimento, Kenia foi a Nova York, mais precisamente no bairro do Harlem, para assumir, ao lado da bailarina Ingrid Silva, a diretoria artística da Fundação Beatriz Nascimento. Kenia também é artista plástica e aproveita a ida aos Estados Unidos para se reunir com galeristas. Em conversa com a coluna, ela fala das influências da cultura da Yorubá nos movimentos Pop Arte e Afrofuturista.
Como artista plástica, você utiliza elementos da cultura Yorubá, com referências nos movimentos Pop Arte e Afrofuturista. Sua arte também traz a questão do racismo como tema? Eu faço arte, porque preciso existir. Por mais que o racismo não seja a minha motivação para criar, minha arte não deixa de provocar reflexões sobre o que me atravessa como mulher negra na América. Viajar para Nova York para me reunir com galeristas não deixa de ser revolucionário. É importante lembrar que o Brasil criou a Semana de Arte Moderna de 1922, que aconteceu em São Paulo, patrocinada pela economia em desenvolvimento do café. Esse movimento acontece 34 anos após a abolição da escravidão! Foi um movimento artístico excludente, elitista, feito por e para herdeiros da elite agrária, cujos antepassados estavam ligados ao período escravista. A influência do pensamento afro-futurista me atravessou quando pensei em criar uma coleção para falar da relação do negro com a natureza através da cultura Yorubá, do culto aos orixás. Uso a pintura abstrata como pano de fundo para compor um visual futurista nos traços e na composição das cores.
O que significa de forma prática o conceito do Quilombo, não só como histórica organização social, mas como movimento ideológico na luta dos negros? Mais que um movimento pensado como lugar de fuga, é um território de existência. O Quilombo é o modelo de sociedade a ser seguido. O quilombismo não permite que a colonização destrua a humanidade da população negra. É necessário desconstruir as referências que temos sobre quilombos. Não estamos falando de pessoas negras plantado cana e falando errado. O pensamento quilombola tem movido pessoas negras para as universidades. Quilombo de Palmares, localizado na Serra da Barriga, foi fundado por uma mulher (avó de Zumbi). A estrutura dessa instituição é matriarcal, como a África que chegou aqui na América. Nós não somos apenas o país mais preto fora do continente africano, nós somos a África fora do continente.
O que há de diferenças e semelhanças na luta negra nos Estados Unidos e no Brasil? Um fator que distância os desafios das duas lutas foram as leis de segregação nos Estados Unidos, durante a segregação o dinheiro da população negra circulava durante mais tempo dentro da comunidade, a proibição do casamento inter-racial possibilitou o fortalecimento da família negra como uma instituição importante na luta pela emancipação. A luta pelos direitos civis foi essencial para garantir direitos essenciais, como o voto. A falsa democracia racial no Brasil é uma grande fake news. É na democracia racial que nasce a empregada doméstica, que na verdade ainda presta um serviço análogo à escravidão, mas é considerada “quase da família”. É na democracia racial que nasce a “branca para casar, mulata pra cama e preta para trabalhar de Gilberto Freire”. É na “democracia racial “que nasce a proibição da nossa cultura, para mais tarde a vemos ser comercializada por pessoas brancas.
Qual é a visão do Brasil nos EUA atualmente? Precisamos falar de recorte racial quando se pensa na imagem do Brasil no mundo. É um ano importante para a vida política do Brasil. Os americanos estão preocupados com a Amazônia, o desmatamento. Mas ainda se chocam quando sabem que no Brasil um negro morre a cada 23 minutos. Tem gente em Nova York que nunca viu uma brasileira preta nos Estados Unidos. Que abismo é esse? O genocídio da população negra. A América ainda não sabe o que acontece com o negro no Brasil, existe uma falta de interesse ou uma necessidade de dizer que somos felizes na desgraça. A nossa história foi mal contada nas escolas, na mídia e no mundo.
A luta negra norte-americana também chega ao Brasil de forma deturpada, não? Nós também temos uma imagem ainda romantizada sobre a luta norte-americana. Acreditar que Martin Luther King era um pacífico sonhador é uma narrativa agradável para quem se beneficia com o racismo. Luther King era advogado, precisava provar para o mundo como o negro era tratado na América, as manifestações aconteciam em frente às câmeras, a população negra foi treinada para não reagir. Não era movimento pacífico, era movimento estratégico. Os norte-americanos acham que somos pacíficos, não entendem porque no Brasil não queimamos tudo quando matam os nossos. Nós somos o mesmo povo e viemos do mesmo lugar, o racismo que muda nossas estratégias. O Brasil não é Estados Unidos e a população negra consegue perceber isso, não somos ingênuos.