‘Mães de bebê reborn’: o limite do bom senso no uso de bonecos realistas
Psicóloga Denise Milk explica à coluna GENTE o fenômeno que tem crescido nas redes sociais

Recentemente, voltou a viralizar nas redes sociais um vídeo publicado há cerca de três anos, no qual uma influenciadora aparece fazendo o “parto” de um bebê reborn (boneco realista que simula recém-nascidos). Nas imagens, Carolina Rossi, conhecida na internet como Sweet Carol, simula nascimento de uma criança, incluindo o corte da bolsa e cordão umbilical. A publicação teve grande repercussão negativa, levando Carolina, graduada em enfermagem, a se explicar. Segundo ela, que faz conteúdos de relaxamento utilizando a técnica ASMR, o objetivo era simular um parto raro, colocando o boneco como um exemplo. O problema é que Carolina acabou pegando uma onda que vem dominando o ambiente virtual: as polêmicas “mães de bebês reborn” – influenciadoras que compartilham a rotina como se os brinquedos fossem realmente crianças. A coluna GENTE ouviu a psicóloga Denise Milk sobre este fenômeno, que explica por que tais atitudes geram tanto incômodo. E até onde a relação com um boneco pode ser considerada saudável.
O que leva uma pessoa adulta a criar vínculo tão forte com um boneco, a ponto de simular experiências como parto? A criação desse vínculo, por mais inusitada que pareça à primeira vista, revela uma tentativa humana — e profundamente legítima — de simbolizar afetos. O boneco reborn, com sua estética hiper-realista, não é apenas um objeto: pode representar uma resposta emocional a algo que está pulsando internamente. Muitas vezes, esse tipo de vínculo oferece uma sensação de controle, cuidado, continuidade… Algo que o psiquismo, por alguma razão, está precisando vivenciar.
Existe relação entre esse tipo de comportamento e questões emocionais? Em muitos casos, há, sim, uma ligação simbólica com vivências de perda, carência afetiva ou até de traumas ligados à maternidade — seja pela ausência dela, pela dificuldade em exercê-la ou pelo desejo não realizado. O vínculo com o boneco funciona, para algumas pessoas, como um mecanismo psíquico de reorganização. É como se o inconsciente dissesse: “Aqui posso cuidar, posso ter, posso viver aquilo que não vivi”. Toda reação tem um porquê. E, mais do que julgar, precisamos aprender a decifrar.
Essa influenciadora é conhecida por fazer ASMR. O que é isso e como esse vídeo simulando o parto de um bebê pode se relacionar a esse trabalho? ASMR é uma sigla para Autonomous Sensory Meridian Response, resposta sensorial que provoca relaxamento e sensação de bem-estar a partir de estímulos auditivos e visuais específicos. No universo do ASMR, sons suaves, movimentos repetitivos e simulações de cuidado são muito utilizados. A encenação do parto, nesse caso, pode ser vista como uma extensão estética e performática desse trabalho. É uma forma de criar atmosfera emocional que, para alguns, tem efeito calmante e até terapêutico.
Quando o uso de bonecos realistas pode ser considerado saudável — e quando pode indicar um possível desequilíbrio emocional? O uso é saudável quando há consciência simbólica: a pessoa sabe que o boneco é um recurso afetivo, lúdico ou terapêutico. Já o sinal de alerta aparece quando há ruptura com a realidade, prejuízo em outras áreas da vida ou sofrimento psíquico evidente. O que precisa ser avaliado não é o objeto em si, mas o contexto e a função que ele cumpre na vida daquela pessoa.
A recente polêmica gerou reações nas redes, com pessoas dizendo até que ela deveria ser internada. Por que esse tipo de conteúdo costuma despertar tanto incômodo? Porque toca em zonas sensíveis do imaginário coletivo. O simbólico do parto e da maternidade é algo profundamente enraizado em todos nós — e, quando encenado fora do “script social” convencional, causa dissonância. Isso incomoda porque desafia o senso comum. E, infelizmente, o julgamento ainda é uma defesa psíquica muito utilizada frente ao que não entendemos.
Como a senhora enxerga a internet na amplificação de práticas como essa e na forma como lidamos com a saúde mental em público? A internet é uma lente de aumento — ela amplia o que já existe, tanto para o acolhimento quanto para o julgamento. É um palco onde a saúde mental é exposta, debatida, mas nem sempre compreendida. Por isso, enquanto psicóloga empresarial, gosto de reforçar que precisamos desenvolver, também nas empresas, o hábito da escuta qualificada e da empatia estratégica. A forma como lidamos com o emocional do outro (online ou offline) fala muito sobre a maturidade da nossa cultura relacional.