Jessé Souza: ‘A desconstrução moral do bolsonarismo só está começando’
Sociólogo relança ‘A Construção Social da Subcidadania’ e explica seus conceitos, que contradizem outros pensadores brasileiros; assista
Um dos sociólogos mais festejados da esquerda no país, Jessé Souza relança o livro A Construção Social da Subcidadania, original de 2003, agora dando mais profundidade à teoria social que o consagrou entre os pensadores brasileiros contemporâneos de maior destaque. Seu sucesso, aliás, é proporcional à sua forma bélica de tratar os pares. Em recentes publicações, deixou claro que não compactua com o pensamento de cânones como Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta. Isso porque, a seu ver, o problema da desigualdade do país deve ser entendido, como ponto de partida, pelos séculos de escravidão. A seguir, a conversa da coluna com Jessé.
SUBCIDADANIA 20 ANOS DEPOIS. “A questão principal no livro é: o que faz com que algumas pessoas sejam admiradas, respeitadas e outras humilhadas e desprezadas? Esse é o ponto. No fundo, o estímulo do comportamento humano é moral, não econômico. Do contrário, não faria sentido alguém que tem 1 bilhão de dólares, com suas necessidades e da sua família satisfeitas por 500 anos, procurar o segundo bilhão. Não há relação com necessidades reais. No fundo, a pessoa busca o reconhecimento social que o dinheiro traz. O motor é moral. Esse habitus montado na família e depois na escola é a classe social. É isso que vai definir a família em que você nasce, a escola que você frequenta, vai definir a renda no mercado de trabalho. Veja como é idiota a ideia da classe como sendo só renda. Ela esconde a noção da desigualdade e da injustiça social.”
OS INVISIBILIZADOS. “Temos quatro classes sociais. Uma ínfima elite, que não é mais que 200 mil pessoas e que detém toda a produtividade relevante. A classe média, que se imagina elite, mas não é, porque não é definida pelo capital econômico, mas pelo capital cultural (acesso ao conhecimento legítimo de boas universidades, cursos de pós, línguas estrangeiras etc). Abaixo dessa classe média, uma classe trabalhadora precária e, mais abaixo, quase 40%, os excluídos e marginalizados. Essas pessoas já nascem em família desestruturada, com mãe solo, abuso sexual naturalizado… Quer dizer, a pobreza econômica não é só econômica, é moral, afetiva, sentimental e cognitiva.”
ELEIÇÕES DE BOLSONARO. “O Brasil é um país rico com uma população pobre. O jeito que a elite arrumou para explicar como podem existir 80% das pessoas pobres é a corrupção. A corrupção através do povo, ‘eleitor de corruptos’, como chaga moral. O que eu sempre quis mostrar é que não se culpa a vítima. No fundo, o que a esquerda nunca fez, na verdade Getúlio Vargas fez e não foi continuado, foi entrar em uma narrativa de como a gente vê e interpreta o país. Sem falar na palavra raça. Qualquer pessoa sabe que aquela arminha do Bolsonaro estava apontada para a cabeça de um jovem negro.”
CONTINUIDADE DA EXTREMA DIREITA. “Essa desconstrução moral do Bolsonaro e do bolsonarismo só está começando. A gente não sabe até onde ela vai se aprofundar. Não adianta desconstruir só o Bolsonaro. Ele não estava só, a elite estava com ele. Muitos ainda estão. Quem tem acesso a esse debate são segmentos educados. O povo, não.”
DIVERSIDADE NO GOVERNO LULA. “É sempre bom quando a gente tem os grupos minoritários em termos de poder, como negros, mulheres etc., em cargos que são de comando. Mas é mais importante ainda ter políticas universais sobre negros e mulheres. Se não for assim, dá a impressão de que se combate o racismo, enquanto 99% vão continuar na comunidade, escola precária etc.”
CORRUPÇÃO x ESCRAVIDÃO. “99% dos intelectuais seguem Sérgio Buarque. Tem que se explicar por que se está em um país rico (mesmo com tanta desigualdade). Tem que culpar alguém. E a culpa que os intelectuais inventaram foi justamente a corrupção. O que está em jogo? O preconceito com a corrupção vai se aplicar ao pobre, mestiço e negro. O homem cordial de Sérgio Buarque não é o brasileiro em geral. Não é porque a elite, especialmente a de São Paulo, a mais importante, se crê americana. É uma ideia louca que está na cabeça das pessoas.”
ELEITOR DE CORRUPTO. “É preciso inventar alguma coisa para dizer que quem vota nesse pessoal representa a mesma coisa que o negro representava antes de 1930, só que sem usar a palavra ‘raça’. Então o que usar? A palavra ‘corrupto’. Assim se diz que o negro é inconfiável e bandido. Quando você transforma esse povo em eleitor de corrupto, está colocando essa mesma pecha nele. Falar ‘eu não gosto de pobre e negro’ pega mal’. Quer dizer, Bolsonaro foi eleito com isso, mas antes dele não se podia dizer. E aí vai dizer o quê? Você moraliza o racista. ‘Olha, eu não tenho raiva desse povinho porque ele é preto, tenho raiva porque é corrupto, não se incomoda com a corrupção. Sou moralmente superior a ele’.”
FAMA DE MAU. “Não vejo minha função como sendo a de agradar às pessoas. Quero esclarecer o público. Usando o que pude estudar, compreender a vida inteira, quero contribuir para que a gente mude o país.”