A incrível vida do ‘Mogli’ brasileiro: 5 anos perdido na Mata Atlântica
Aelcio Alves do Nascimento, 53 anos, relata a VEJA suas memórias dignas de filme
No famoso filme da Disney, Mogli é um menino criado por lobos em meio a uma floresta cheia de perigos. Aos 53 anos, Aelcio Alves do Nascimento tem suas semelhanças com o personagem dos cinemas, colecionando histórias impressionantes dos tempos que, ainda criança, conviveu com onças perdido na Mata Atlântica do norte da Bahia, onde hoje se concentra o povoado de Baixio, região que se descortina para o turismo na cidade de Esplanada. Pontuada de lagoas e rios de água cristalina, num litoral repleto de coqueiros, a pacata vila de pescadores que recebe investimentos hoteleiros como do Grupo Fasano, ainda é cercada pela floresta e seus mistérios. Diante do mar, onde hoje é salva-vidas e uma verdadeira celebridade local, Aelcio relata suas memórias à coluna.
CAINDO NO RIO. “Por volta de 1978, quando tinha 8 anos me perdi na floresta. Era época de natal, apareceu uma moça dando uns carrinhos de presente. Dois dias depois, eu e o meu irmão pegamos os carrinhos, amarramos um barbante e colocamos fogo como brincadeira. Mas o do meu irmão pegou fogo mesmo. Por causa disso, ele queria o meu e como não dei, começamos a brigar, coisa de criança. Meu pai, muito rígido, pegou uma vara de biriba, me bateu e saí correndo até cair num rio. Nadei até certo ponto, só que me perdi. Passei uma noite na mata, com medo de tentar voltar para casa, segui andando. Só me acharam cinco anos depois, quando eu já tinha 11 anos”.
NA TOCA DO TATU. “As noites não eram nada boas não. Na época de chuva, dormia enterrado que nem lagartixa, porque o chão é mais quente. Ocupava buraco de tatu, me acalmava ali pela noite. Para sobreviver, até lagarta de pau podre eu comia. Seguindo o passo de tamanduá, conseguia comer larvas de madeira podre… Teve uma época que fui pegar uma raiz, passei uns dois dias bêbado. Era dava alguma sensação estranha. Eu me mantinha assim, com raízes, fruta, coco de piaçava”.
ALIMENTAÇÃO. “Teve uma época que saí da mata e caí em um rio. Eu andava para lá e para cá vendo cordinhas sempre penduradas nas árvores. Fui investigar, saber o que era, era covo (cesto de vime usado em pesca) de pessoas que colocavam no rio. Metia a mão e comia o bicho cru que estava ali. Tinha muito pitu, que é da família da lagosta, só que do rio. Tipo um camarão, só que grande”.
FRENTE A FRENTE COM UMA ONÇA. “Teve uma dessas andanças que me bati com uma onça. A minha sorte foi que no local que eu estava era cheio de pinho, o pinheiro disfarçava o cheiro. Como eu já tinha tempo na mata, o nosso cheiro desaparece… Com a onça eu me escondi em um buraco e ela ficou do lado de fora, com as patinhas tentando me pegar. Não tinha como sair. E falei comigo mesmo: ‘Se eu passar dessa, não durmo mais no chão. Aí ela se distraiu com outro animal e se acalmou. Quando saí, subi na primeira árvore que vi na frente. Dalí para frente não dormi mais em buraco”.
BRIGA COM TAMANDUÁ. “Um dia, subindo numa árvore, vi um tamanduá derrubando um cupim. Caiu em cima da minha cabeça. Quando cheguei lá, joguei ele lá embaixo. Como a árvore era alta e o lugar era bem fechado, ele bateu lá embaixo e subiu de volta. De manhã um caçador e os cachorros me acharam. Os caras olharam com candeeiro, nem era lanterna. Atiraram no tamanduá. Os cachorros continuaram latindo. Era eu dentro do buraco. Fiquei com medo e não saí”.
COMO OS ANIMAIS. “Como eu era magro, o cabelo também cobria parte do meu corpo. Quando me pegaram, o cabelo batia na bunda. Andava nu, não tinha mais roupa. Quando me acharam, eu estava com um pedaço de pano amarrado na cintura feito uma fralda, que achei num brejo pendurado. Como passei muito tempo no mato, a voz se tornou um grunhido, eles me entendiam bem pouco. Por isso até hoje eu gaguejo. Imitava muito os animais, via o modo que eles viviam e ia me adaptando. Acho que graças a isso, a primeira onça que me atacou não conseguiu me fazer de almoço, acho que por causa do cheiro”.
CONFUNDIDO COM A CAIPORA. “Os caçadores amarraram o cachorro e foram embora. Quando desci da árvore, ainda escuro, entrei em uma mata mais fechada. Foi quando vi outra onça. Fiquei em cima das árvores, pulando de galho em galho. Até que depois de um tempo rolei de um morro, caí dentro de um brejo onde tinha um roceiro por perto. Achou que fosse uma caipora (lenda folclórica da região) e jogou um cachorro dentro. Quando saí, ele grita: ‘Não é caipora não, é um menino’. Assim fui encontrado”.
ASSOMBRAÇÃO. “Uma vez vi um jegue selado andando sozinho numa estrada de terra de noite. Parecia como quem carregava um monte de coisa fazendo barulho, desconfiei que não era um jegue normal. Ele sumia e aparecia. Fora isso, nunca vi lendas das matas”.
DE VOLTA À CIDADE. “Fui levado à cidade e minha madrinha me reconheceu. Quando colocavam comida normal para mim, sentia um fedor terrível, demorei para comer de novo. Fiquei um bom tempo para me acostumar a comida cozida, passava mal de parar no hospital… Olha, eu não dou experiência de vida para ninguém, porque passar tempo na mata, no mato como animal, não é fácil. Já tinham me dado como morto, meus familiares não me acharam mais. É algo que eu não recomendo, mas também é uma experiência que ninguém me tira”.
SALVA-VIDAS. “Fui conhecer a civilizações de 1984 para cá, escola, essas coisas… Como tenho muita experiência em água, em nadar, em 1993 me chamaram na prefeitura. Eu disse: ‘Olha, salvar alguém nunca salvei, mas na água eu sei entrar e sai’. Aí o rapaz disse: É disso que eu preciso’. Na época, eu só tinha até a segunda série, voltei a estudar com ajuda dos colegas e cheguei até a sétima série. Tenho quatro netos e duas filhas. Só não sou casado. Gosto da liberdade”.
DE VOLTA À FLORESTA. Voltei a entrar na mata algumas vezes anos atrás. Mas é triste, mudou muita coisa. Por onde já passei hoje tem casa, plantação de eucalipto, derrubaram a maior parte das árvores. Se é no tempo de hoje, não iam me tirar da mata não. Teria ficado lá para defender tudo”.