Os erros de Hillary que Kamala não pode repetir se quiser ser presidente
Democratas se esforçam para não cair nas mesmas armadilhas que custaram a derrota para Trump, em 2016, e adiaram o sonho de ver uma mulher na Casa Branca
Para os setores progressistas da sociedade americana, as eleições de 2016 seriam o desdobramento natural do curso da história. Depois de eleger o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, era chegada a vez da primeira mulher no comando da maior democracia do mundo. Hillary Clinton, a secretária de Estado de Barack Obama, cumpria todos os requisitos do cargo. Além da experiência, da competência e da habilidade – características reconhecidas até por seus detratores – ostentava um sobrenome carregado de simbolismos.
Ao mesmo tempo em que o marido Bill, um dos presidentes mais charmosos e populares da história recente do país, se posicionava como seu principal cabo eleitoral, Hillary cultivava a imagem de mulher independente, que trilhou a própria carreira política e que, no papel de primeira dama, ficou ao lado do marido quando ele enfrentou um escândalo sexual que marcou seu primeiro mandato.
Com atributos capazes de despertar a simpatia de diferentes recortes do eleitorado, a campanha passou a ser sobre quebrar o “teto de vidro”, uma barreira invisível que impediria mulheres e minorias a avançarem na sociedade. “O céu é o limite” discursou a candidata, vestida de branco como as feministas que lutaram pelo direito ao voto, na convenção democrata que confirmou seu nome (um emocionado Bill Clinton vertia lágrimas e aplaudia esfuziantemente na plateia).
Tudo levava a crer que seria uma barbada, com pesquisas e imprensa ecoando um certo “já ganhou”. Como se sabe, não foi o que aconteceu. Clinton foi varrida pela onda de “América Grande Novamente”, de Donald Trump, até então um outsider do mundo da política, que transformou a corrida presidencial em um espetáculo próprio e que colou na opositora o rótulo de representante do establishment, cujo único interesse seria manter as coisas como estavam.
Oito anos depois. Trump volta a enfrentar uma mulher na briga pela Casa Branca. Mas, dessa vez, do outro lado do ringue se encontra uma postulante cuja estratégia de combate é bastante distinta. Kamala Harris tem calculado meticulosamente seus movimentos para não repetir os erros da colega. Em seu novo livro, “Algo perdido, algo ganho: Reflexões sobre a vida, o amor e a liberdade”, recém lançado, Hillary conta que a vice-presidente ligou para ela logo depois de Joe Biden anunciar que iria abandonar o pleito. Ao receber um pedido de ajuda de Harris, respondeu por ela e pelo marido: “Faremos o que você precisar”.
A ajuda vinha de quem sabe o que é estar nesse papel. “Harris tem menos bagagem que Clinton, mas o conteúdo geral das agendas das duas é bastante semelhante”, aponta Paul Frymer, professor de ciência política de Stanford.
Se a mensagem se parece, a forma de disseminá-la tem se mostrado bastante distinta. Harris aparenta estar a par dos obstáculos que surgiram no caminho da correligionária em 2016, detalhados em outro livro, “O que aconteceu”, em que oferece explicações para a inesperada derrota.
Em sua mais recente obra, Clinton faz questão de frisar “que 2024 não é 2016”, atentando para o fato de Trump ter assustado parte do eleitorado com seu jeito agressivo que culminou no episódio da invasão do Capitólio. O espectro de outros sentimentos mobilizadores do eleitorado trumpista, contudo, se mantêm vivos e Harris sabe que tem de lidar com eles.
Eis algumas lições de Clinton para Harris:
Nada de salto alto
O calçado só é bem-vindo para transparecer elegância. Na campanha, a ordem é calçar as sandálias da humildade. Harris tem constantemente atentado para o fato dela ser o azarão da disputa e colocado o favoritismo sobre os ombros de seu adversário.
Em 2016, quando a eleição chegou ao fim, Clinton conta que acreditou que seria eleita e esperou calmamente o resultado em seu quarto de hotel. Só ali, diante da contagem desfavorável dos votos, percebeu que o chão sobre o qual pisava estava há tempos se movendo em direções que não soube captar.
“Eu estava conduzindo uma campanha presidencial tradicional com políticas cuidadosamente pensadas e coalizões meticulosamente construídas, enquanto Trump estava conduzindo um reality show que habilmente e implacavelmente alimentava a raiva e o ressentimento dos americanos”, escreveu
Cuidado com as palavras
Na disputa de oito anos atrás, Hillary deu uma declaração em que prometia “colocar muitos mineradores de carvão e empresas de carvão fora do mercado”. A ideia era extinguir aos poucos uma indústria altamente poluente, que contribui para o aquecimento global e oferecer capacitação para alocá-los em outras áreas. A proposta caiu mal entre os trabalhadores da área e a candidata teve de fazer uma excursão de ônibus por estados produtores do mineral. Em Williamson, Virgínia Ocidental, centenas de manifestantes a saudaram com a mensagem “Vá para casa, Hillary”, escrita em cartazes.
No debate entre Trump e Harris, o Republicano tentou colar na adversária a ideia de que ela seria contra a exploração de gás de xisto, cuja retirada do subsolo depende de fraturamento hidráulico para sua liberação, uma técnica conhecida como fracking. Baseava-se em um posicionamento da democrata durante a corrida eleitoral de 2020. A atividade é muito disseminada na Pensilvânia, um dos estados divididos que pode ser crucial na eleição.
Foi um dos poucos momentos em que a candidata pediu a palavra para um esclarecimento: “Na verdade, eu fui o voto de desempate no Ato de Redução da Inflação, que abriu novas concessões para fracking. Minha posição é que precisamos investir em fontes diversificadas de energia para reduzir nossa dependência do petróleo estrangeiro”, alegou.
Relação contra a imprensa
Clinton tem muitas críticas em relação ao comportamento da mídia, que durante toda a campanha investigou o fato de ela usar um servidor privado de e-mail, enquanto ocupava um cargo na Casa Branca, em vez de um endereço eletrônico oficial. O tema foi repisado por meses, sem, no entanto, se comprovar qualquer quebra do sigilo imposto ao cargo, ou ter colocado a segurança do país em risco. Em uma entrevista comandada pelo jornalista Matt Lauer, da NBC, ela foi constantemente confrontada e se ressente de não ter dado uma resposta à altura.
Já Kamala Harris tem sido extremamente prudente e econômica em sua relação com a imprensa. Ela concedeu apenas duas entrevistas exclusivas – à CNN e à afiliada da ABC na Philadelphia – que foram consideradas pouco incisivas. A vice-presidente tem dado poucas declarações sobre temas polêmicos e escolhe a dedo os jornalistas com quem compartilha suas opiniões.
Atacar Trump, não seus eleitores
A estratégia de enfrentamento ao trumpismo adotada pelos democratas tem sido a de usar ironia e sarcasmo para rebater a agressividade de Trump e sua claque. Obama, durante a convenção do partido, chegou a fazer um gesto que insinuava que o ex-presidente republicano tinha pênis pequeno. Mas quem mais tem sido escalado para ridicularizar os adversários é o candidato a vice-presidente na chapa de Harris, Tim Walz. Em nenhum momento, no entanto, ele direciona a artilharia para os eleitores, já que há uma grande chance de ofender quem os candidatos precisam conquistar.
Em 2016, Hillary cometeu o erro que é apontado como um de seus principais deslizes. Cansada de ataques misóginos dos seguidores mais fanáticos de seu adversário, resolveu defini-los de maneira agressiva: “Você poderia colocar metade dos apoiadores de Trump no que eu chamo de cesta dos deploráveis”, declarou.
Distância do movimento woke
Temas da agenda identitária e de direito das minorias, movimento que se tornou conhecido como woke e que deram o tom da campanha de Hillary , não são o foco da estratégia de Harris. Em vez de destacar que é mulher e negra – uma obviedade – a candidata tem deixado que os adversários o façam e que, ao abordarem o tema, soem como preconceituosos.
No debate, quando Trump trouxe o assunto à baila. Harris respondeu que o ex-presidente enxerga a questão racial como algo que divide o país em vez de ser um traço marcante da diversidade que marca os Estados Unidos, posição que classificou como “uma tragédia”. “Eu realmente acredito que a grande maioria de nós sabe que temos muito mais em comum do que o que nos separa, e não queremos esse tipo de abordagem que está constantemente tentando nos dividir, especialmente por questões raciais,” disparou.