Nem tudo é apenas blábláblá
Levantamento de palavras ditas por Kamala e Trump em debate ajuda a iluminar a postura dos candidatos – e como podem vir a governar a partir de 2026
O primeiro – e muito provavelmente o único – debate entre Kamala Harris e Donald Trump, realizado em 10 de setembro, ainda ecoa nos Estados Unidos. Ele ajudou a pôr em pé a candidatura da democrata e a mostrar que as diatribes do republicano podem vir a arranhá-lo, mesmo entre os súditos da arrogância de língua solta. Soa como infâmia risível a mentira de que imigrantes haitianos ilegais estariam comendo animais de estimação na cidade industrial de Springfield, em Ohio. Tudo mentira, a começar pelo fato de os cidadãos do Haiti terem os documentos legalizados e foram nem recebidos em uma região de mão de obra escassa. Não houve nocaute, mas Harris saiu-se melhor na contenda feita de cadeiradas apenas metafóricas. Queda na lona houve em 1960 quando o jovial John F. Kennedy, maquiado e sorridente, opôs-se, na briga de imagem, com o pálido e insosso Richard Nixon. Em 1983, o presidente Ronald Reagan, de 73 anos, desarmou uma pergunta do democrata Walter Mondale, de 56 anos, com uma zombaria de treinado ator de Hollywood, ao misturar ironia com rapidez: “Quero que saibam que também não vou fazer da idade uma questão desta campanha. Não vou explorar, para fins políticos, a juventude e a inexperiência de meu oponente”. Reagan seria reeleito.
Os debates, enfim, ao menos nos Estados Unidos, de audiência maciça, podem ser decisivos, e rendem minutos e mais minutos em programas políticos; linhas e mais linhas nos jornais, revistas e sites. São esmiuçados de todos os ângulos. A revista britânica The Economist publicou os detalhes de um interessantíssimo trabalho do cientista americano Mark Liberman, autor de um blog a respeito de linguagem política. Ele esmiuçou todas – todas! – as palavras ditas por Harris e Trump naquela noite. Os achados iluminam o modo pelo qual cada um deles se comunica e, de algum modo – ou de todos os modos –, enxerga o mundo ao redor. É atalho também para compreender a personalidade de ambos.
A saber, eis os dados colhidos da cuidadosa análise:
RIQUEZA DO VOCABULÁRIO
Ao atingir a marca de 4 000 palavras pronunciadas, Harris tinha usado 1 000 termos diferentes. Trump precisou chegar a 6 000 vocábulos para atingir a mesma variedade.
QUEM DISSE O QUÊ
A palavra mais usada por Harris foi “ is” (109 vezes), seguida de “president” (55 vezes). A palavra mais pronunciada por Trump foi “they” (230 vezes), seguida de “it” (201 vezes). E daí? Daí que Trump, dirigindo-se a seus eleitores, quase sempre de olho para a câmara de televisão, usou e abusou da expressão “eles” para pôr a culpa de algum coisa no presidente Joe Biden e a vice. Com o pronome “she” ele foi mais econômico, com 116 ocorrências. Harris, ao repetir “é, é…”, foi um tantinho mais direta e assertiva.
VELOCIDADE
Harris disse 160 palavras por minuto, na média final. Trump disparou 198 a cada sessenta segundos. É informação que confirma uma impressão já antiga de velha – Harris fala menos e Trump fala que é uma barbaridade.
TOM DE VOZ
Mark Liberman investigou também a frequência vocal dos debatedores. Estudos de escola revelam que, quase sempre, os picos vocais femininos são mais elevados que os masculinos, em padrão verificado no duelo de 10 de setembro. Até aí, nada a acrescentar. Contudo, Trump deu um salto no instante em que respondeu a respeito de sua postura golpista no ataque contra o Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. No desfecho do debate, a frequência de Harris caiu, possivelmente por estar calma. A de Trump subiu, revelação de nervosismo.
Tudo somado, a ciência da linguagem parece andar de mãos dadas com o modo de ser de cada um dos candidatos – e indica, com boa dose de probabilidade, que presidente podem vir a ser, ao despachar da Casa Branca.