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Tokyo 1964, Tokyo 2021

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As memórias olímpicas de uma família
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O dia em que o AI-1 caducou

Episódio 2

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 jul 2021, 08h13 - Publicado em 24 jul 2021, 08h00

Este blog nasceu de um par de correspondências recebidas em Tóquio por meu avô, Waldemar Zumbano, o Neno, treinador da equipe brasileira de boxe na Olimpíada de 1964. As cartas foram enviadas pela família, de São Paulo. Revelam os humores, o cotidiano e a política daquele tempo no Japão e no Brasil – e iluminam as transformações do mundo em mais de cinco décadas.  

No primeiro episódio desta série, o Neno quase foi impedido de embarcar para Tóquio, em decorrência de sua militância política. Foi salvo pela coragem do então presidente do COB, o Major Sylvio de Magalhães Padilha. Havia, na carta recebida por ele na Vila Olímpica, uma mensagem cifrada.

Trecho da carta: a mensagem cifrada tinha a chave do alívio depois de sair do Brasil
Trecho da carta: a mensagem cifrada tinha a chave do alívio depois de sair do Brasil (./Arquivo pessoal)

“(…) O que deve interessar a você é que o dia de um mês depois do aniversário da mamãe já passou e com você ninguém mexeu. Entendeu, né?” Waldemar Zumbano, o Neno, recebeu a carta em 20 de outubro. Ele estava triste, andava pelas alamedas da Vila Olímpica de Yoyogi pensando na vida e onde errara no canto do ringue. Dois de seus pupilos, o super meio-médio Luiz Carlos Fabre e o médio Luiz César, tinham sido eliminados em seus combates de estreia no torneio olímpico de boxe. O terceiro, o super leve João Henrique, então conhecido como “Cobrinha”, chegaria até as quartas de final, depois de vencer duas lutas. Eliminado por pontos pelo ganês Eddie Blay, João ficou a apenas uma vitória do pódio. Como profissional, disputaria o título mundial três vezes, com o Neno no corner: contra Nicolino Loche, na Argentina, em 1969; e duas vezes contra Bruno Arcari, na Itália, em 1971 e 1972. O boxeador morreria em 1982, aos 36 anos, em um acidente de ônibus – chegou a ajudar os feridos, os transportou para o hospital. À noite, uma hemorragia o nocauteou para sempre. Naqueles dias do acidente, Neno ficou mudo. Pouco falava, e, quando falava, gostava de recordar dos momentos em Tóquio com João, o “Joãozinho”, como ele o chamava. Na primavera oriental de 1964, entre um treinamento e outro, as cartas o acalmavam. Ele não demorou a entender a charada que a filha, Raquel, minha mãe, propusera: “Entendeu, né?”. A mulher do Neno, Frida, minha avó, que emigrara da Polônia para o Brasil em 1933, um pouco depois do crash da bolsa de 1929, um pouco antes de Hitler, nasceu em 9 de setembro. “Um mês depois do aniversário da mamãe” seria, portanto, 9 de outubro. Pois em 9 de outubro de 1964 o AI-1, o primeiro Ato Institucional da ditadura militar, caducara. Depois de seis meses, tendo sido anulado, já não permitiria a prisão dos que nele foram listados, como Waldemar Zumbano, o Neno. Já não se podia, portanto, “mexer com ele”. Se embarcara por ordem do presidente do COB, Sylvio de Magalhães Padilha – “Ou o professor Zumbano viaja, ou o Brasil não irá para a Olimpíada” –, o retorno parecia não trazer problemas.

O Neno com João Henrique, numa rua de São Paulo: acidente trágico e morte precoce
O Neno com João Henrique, numa rua de São Paulo: acidente trágico e morte precoce (./Arquivo pessoal)
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É estranho que, numa carta selada, inviolável, a conversa em torno de temas políticos tivesse de ser dissimulada. Mas a ditadura impunha o medo e, afinal de contas, o Neno já tinha sido preso nas primeiras semanas de abril de 1964. No entanto, no diálogo entre quem estava no Brasil e ele, lá em Tóquio, tudo o que saía nos cadernos internacionais de revistas e jornais era assunto – pano de fundo para os Jogos, porque nem sempre é só esporte. Uma Olimpíada é esponja de seu tempo. A pandemia é a comprovação dessa máxima. Com letra de médico, ruim mesmo de acompanhar, Max, meu pai, entrou em cena e escreveu num canto de papel para o sogro. “Caro Waldemar: não me dão vez. Vou me espremer nessa nesga para escrever algo. Vimos o De Gaulle. Vimos os três soviéticos no Cosmos e a renúncia do Kruschev. Tudo isso e mais os Jogos Olímpicos têm movimentado bastante os nossos dias.” Aqueles personagens citados por Max estavam mudando o mundo.

Em 13 de outubro de 1964, o presidente da França, Charles de Gaulle, foi recebido, no cais da Marinha no Rio de Janeiro, por Castelo Branco e seu vice, José Maria Alckmin. O cruzador Colbert, que trouxera o francês ao Brasil, atracou escoltado por navios e aviões. Um ano antes, numa conversa com o correspondente do Jornal do Brasil em Paris, o embaixador do Brasil na França, Carlos Alves de Souza, disse uma frase que se perpetuaria: “O Brasil não é um país sério”. Ele se referia a uma negociação comercial entre as duas nações relativa à pesca de lagostas. Dali para a eternidade a tirada seria atribuída erroneamente a De Gaulle: “Le Brésil n’est pas un pays sérieux”. Usada amiúde para explicar tudo, embora não ilumine nada.

Charles de Gaulle
Charles de Gaulle: “Le Brésil n’est pas un pays sérieux” (Reprodução/Divulgação)
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Em 12 de outubro de 1964, o programa espacial soviético pôs em órbita a Voskhod 1, levando a bordo o comandante Vladimir Komarov, o engenheiro Konstantin Feoktistov e o médico Boris Yegorov. Em 24 horas e 17 minutos de voo, a nave deu dezesseis voltas em torno da Terra. Era o apogeu da Guerra Fria, um momento turbulento para as autoridades de Moscou.

Os cosmonautas Constantine Feoktistov, Vladimir Komarov, e Boris Yegoro, em 1964 -
Os cosmonautas Constantine Feoktistov, Vladimir Komarov, e Boris Yegoro, em 1964 (Sovfoto/Universal Images Group/Getty Images)

Em 13 de outubro de 1964, depois de profunda crise da produção agrícola, com desabastecimento maciço, o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev, foi forçado a renunciar ao posto. Ele estava de férias na Crimeia e teve de voltar rapidamente ao Kremlin. Pagou a conta pelas dificuldades econômicas, mas também pela rixa que ele mesmo provocara ao denunciar os crimes de Stálin em 1956. Foi substituído pelas sobrancelhas de Leonid Brejnev.

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Na primeira Olimpíada de Tóquio, a ginasta soviética Larisa Latynina ganhou duas medalhas de ouro, uma no solo e a outra no geral por equipes. Seria o fim de uma carreira magnífica, de dezenove pódios no total, com nove ouros. Tornou-se, então, a maior campeã olímpica de todos os tempos, em marca que seria superada apenas 44 anos depois, pelo homem-peixe Michael Phelps. Larisa embarcou para Tóquio cumprimentada por Kruschev e retornou condecorada por Brejnev.

Meu pai, Max, ao cabo de suas lembranças políticas, como era de seu feitio, arrumou um cantinho naquela carta para tratar dos Jogos – e a letra só piorava. Revelava esperança de que o pódio, o fecho de ouro, viria com os pugilistas, mas era apenas incentivo para o sogro distante. Entre parênteses anotou um nome de mulher e uma medida: “(Aída, 1,74)”. O que Aída fez e o que ela representava, há 57 anos, será o tema da próxima postagem deste blog colado a um par de cartas remotas.

 

 

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