O predestinado de Xerém
John Kennedy estava marcado para fazer o gol da vitória do Fluminense
Estava escrito. Seis mil anos antes de ter nascido com nome de presidente americano, o menino John Kennedy estava predestinado à glória, como um Aquiles banhado no rio Estige, invulnerável às invejas, às pragas e às travas das chuteiras dos beques de fazenda. Outro dia, mostraram na TV com cara de espanto que na terça-feira da semana decisiva da final contra o Boca Juniors, John Kennedy disse a um amigo: “É questão de honra. É questão de tempo. O gol é meu, o gol é meu. O gol do título é meu”.
“É um profeta?”, se espantaram. “Um moleque arrogante”, reclamaram outros. Meus amigos, os idiotas da objetividade custaram a perceber a evidência ululante: o menino John Kennedy contava em segredo o que sua alma berrava, que ele estava predestinado.
Ah, quanta gente tenta ler nas estrelas, nos búzios, nas cartas as linhas de uma verdade ancestral que lhe garanta um lugar na memória dos que vierem depois. Aqueles que tem o destino escrito, como o predestinado de Xerém, já nascem sabendo.
Tudo começou seis mil anos atrás. Vocês compreenderam? Podia ser o Boca Juniors, o River Plate, o Palmeiras ou outro, mas estava descrito nos hieróglifos das pirâmides de Quéops que neste ano o Fluminense seria o maior da América e que o gol sairia de um chute com a força de um foguete, a direção de uma flecha e a alegria de um moleque que solta pipa num domingo de sol. Tão moleque que quando o repórter lhe perguntou se sabia proibido passear sentimentos ternos ou desesperados nesse museu do pardo indiferente, nosso herói só soube confessar que sabia sim, mas que aquele gol não só dele, era daquela gente, aquela massa de tricolores que havia saído de casa para vê-lo jogar.
Ah, dirão os idiotas da objetividade, a regra é clara: é proibido comemorar com a torcida! Pois se é assim, pior para a regra. A alegria de John Kennedy não cabe nos livros de regra, como a dos passarinhos não cabe numa gaiola.
Amigos, em futebol, nunca houve uma vitória improvisada. Tem sido assim através dos tempos. Mas a vitória deste sábado marcado na eternidade só podia ser obra de um épico de um Cecil B. DeMille, a redenção dos destinos de homens condenados ao esquecimento. Vejam Cano, esse argentino que toca a bola para o fundo das redes com a simplicidade de quem chupa um Chicabon na praia de Copacabana, escorraçado do Vasco por ter perdido um pênalti depois de ter feito 43 gols. Ou Fábio, o goleiro que atravessa a pequena área como César cruzou o Rubicão, defenestrado pelo Cruzeiro sob a ingratidão que só os mesquinhos são capazes. Felipe Mello, de quem se fala que onde pisa a grama tem medo de renascer, dispensado do Palmeiras. Marcelo, nosso menino de Xerém, exilado numa ilha grega como Filoctetes. Todos enterrados vivos pelos lorpas e pascácios, que seriam capazes de achar que os irmãos Karamazov eram laterais de um time russo.
Mas esses náufragos agarrados em pedaços de barricas de esperança jogadas ao mar precisavam de um capitão e desde Ahab nunca houve um como Fernando Diniz. Era um morto-vivo que circulava pelos clubes amaldiçoado por — pecado mortal, meus amigos, — não ter um título! Ah, como eles se compraziam a cada derrota de Diniz: “tá vendo”, diziam os aparvalhados, “joga bonito como nunca e perde como sempre”. E a saliva dos tarados por cinco volantes escorria pelo canto da boca enquanto falavam. Para os papalvos, Diniz ouvia as estrelas e havia perdido o senso.
O destino quis que o predestinado de Xerém, os náufragos condenados ao esquecimento e o técnico que distraído pisava nos astros se encontrassem no Fluminense. Como a tripulação que embarcou no Pequod, os homens de Diniz também caçavam a sua Moby Dick, a taça Libertadores que escorregou pelas mãos em 2008 assombrando os sonhos dos tricolores como um vampiro que suga a alma.
“Um milhão de argentinos vão invadir o Rio”, chorava a grã-fina de narinas de cadáver. “O goleiro do Boca tem pacto com o diabo”, tremia a vizinha gorda e patusca. “Vocês não serão campeões”, decretavam os adversários, com um misto de prazer e medo da nossa alegria. Mas estava escrito mil vezes. Daqui a duzentos anos a cidade dirá, mordida de nostalgia: — “Aquele título!”. Ah, quem não esteve no Estádio Mário Filho não viveu. E o Fluminense fez uma exibição perfeita, irretocável. Lutou com a alma indomável do campeão. Ninguém conquista o título num único dia, numa única tarde. Não. Um título é todo sangue, todo suor e todo lágrimas de um campeonato inteiro. Porque estava escrito.
(Este texto é uma homenagem a Nelson Rodrigues, o maior de todos os tricolores que sempre soube que este título viria).