Como o Rio virou um faroeste
Livro “Milicianos” mostra como policiais militares criaram um estado paralelo
Em 1995, o então governador do Estado do Rio, Marcello Alencar, criou um bônus salarial para os policiais que demonstrassem “atos de bravura” no confronto com criminosos. Rapidamente apelidada de “gratificação faroeste”, a medida transformou a política de segurança pública em uma autorização para matar. Como nos filmes de western, quem matasse mais, ganhava mais. Em um ano, o número de mortos nos confrontos subiu de 300 para 397. Mas isso foi só o começo.
Lançado nesta semana, o livro “Milicianos” do jornalista Rafael Soares é um retrato sem retoques sobre como os servidores públicos concursados e formados para cumprir a lei criaram um estado paralelo no Rio de Janeiro, onde não se diferencia mais onde começa e onde termina o poder das facções do tráfico e as dos militares.
A gratificação faroeste foi extinta em 1998, mas o seu efeito dura até hoje. “Quando se confere ao policial liberdade para matar, para executar criminosos, sem que isso custe nada, se lhe confere também tacitamente a liberdade para não matar e negociar a sobrevivência. Olhe a moeda que o policial da ponta tem em suas mãos: a vida. Não há moeda que se inflacione mais, não há bem mais precioso. O suspeito dá o que tem e o que não tem para sair vivo”, explica em entrevista no livro o antropólogo Luiz Eduardo Soares, que por 14 meses foi subsecretário de segurança do Rio no governo Anthony Garotinho até ser demitido por denunciar a existência de uma “banda podre” na polícia do Rio.
Com a gratificação faroeste, policiais passaram a sequestrar criminosos e exigir resgates, num processo de extorsão que continuou mesmo depois do fim do bônus. A rapina ganhou o apelido “mineira”, referência à extração de ouro e pedras preciosas na mineração.
Com o tempo, o policial que ganhava medalhas de bravuras de dia e extorquia criminosos de noite passou a vender a segurança nos bairros que atuava. Mas a vantagem de ter a proteção da corporação, que historicamente só pune os milicianos com penas brandas, fez os PMs transformarem o uso da força investido no Estado em um negócio.
A taxa de proteção ao comércio se transformou num adicional sobre a venda de botijão de gás, no monopólio das instalações ilegais de luz e tv a cabo e, consequência lógica, no apoio aos candidatos a vereador e deputados estaduais. O poder paralelo da milícia se misturou com os discursos políticos de “atirar na cabecinha” e “bandido bom é bandido morto”, com os dois lados lucrando com operações policiais que funcionaram para ampliar o território dos criminosos fardados.
No livro, os nomes dos milicianos se sucedem com histórias que Rafael Soares havia contado no podcast “Pistoleiros”. O leitor é apresentado a Ronnie Lessa (acusado pelo homicídio da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes), Claudio Luiz Silva de Oliveira (condenado por ter encomendado a execução da juíza Patrícia Acioli), Marcos Vieira “Falcon”da Silva, Geraldo “Rambinho” Pereira, Orlando Curicica, “Capitão Adriano” Magalhães da Nóbrega, Antônio “Cabo Freitas” e Wellington “Ecko” da Silva Braga (que até sua morte em 20221 foi o chefe da maior milícia do Rio).
Repórter policial dos jornais O Globo e Extra, Soares faz de “Milicianos” um livro desesperançoso. A contaminação da polícia, a associação da milícia com o tráfico e a cumplicidade da política são retratadas com a crueza de um boletim de ocorrência. A apuração de Soares cheira a sangue, dinheiro e violência. Não ler este livro é fugir da realidade, como um paciente que finge que um câncer não existe enquanto suas células se espalham pelo corpo feito metástase. Hoje é o Estado do Rio. Amanhã pode ser no resto do país.
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Título: Milicianos – Como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele
Autor: Rafael Soares
Editora: Objetiva
Volume: 320 páginas
Preço: R$79,90 (livro) e R$ 39,90 (online)