O avanço de Jair Bolsonaro sobre os evangélicos tirou Lula da Silva da zona de conforto. De acordo com o Datafolha, em 20 dias o presidente aumentou de 10 para 17 pontos percentuais a sua vantagem no segmento, chegando a 49% ante 32%. Era previsível. Em 2018, segundo a projeção à época do Datafolha, Bolsonaro teve 7 de cada 10 votos evangélicos no segundo turno. O que surpreende é como o PT não havia se preparado para a ofensiva. Com um movimento óbvio, Bolsonaro impôs a sua agenda na primeira semana de campanha.
Michelle, a esposa evangélica colocada na linha de frente da campanha bolsonarista, é a peça-chave da estratégia. Semanas atrás, ela distribuiu vídeo de um culto no Palácio do Planalto que, segundo ela, até a chegada do marido estava “consagrado a demônios” e agora estaria “consagrado ao senhor”. Na terça-feira (16/08), no primeiro ato da campanha, Michelle discursou em Juiz de Fora: “Nós sabemos que o inimigo, ele só quer roubar, matar e destruir, e manter as pessoas em cativeiro cegas. Que Deus dê sabedoria e discernimento ao nosso povo brasileiro para que não entregue o nosso país, a nossa nação tão amada por Deus, nas mãos dos nossos inimigos”.
“Inimigos” é a palavra que define essa ofensiva. “A Michelle articula essas referências do cristianismo, do bem contra o mal, do mundo que está sempre à margem de ser conquistado pelas forças do mal, e a partir dessas referências que o povo deve escolher, não a partir das lembranças do passado em relação à prosperidade, ou ao que aconteceu na pandemia, mas do vínculo do presidente numa perspectiva cristã e cristianizadora”, diz o antropólogo Juliano Spyer, autor de Povo de Deus – Quem são os evangélicos e por que eles importam”, em entrevista ao UOL.
Para Spyer, “Michelle é mais do que a esposa, é a promessa de que o presidente poderá no futuro se converter no cristianismo evangélico, que é algo que não aconteceu ainda. Essa expectativa de conversão de Bolsonaro se fundamenta na tese de que ele possa se tornar ‘alguém diferente do que é hoje'”.
A máquina digital bolsonarista intensificou a fabricação de fake news direcionadas a esse público, como a de que Lula vai fechar igrejas ou proibir cultos se for eleito. Uma foto da mulher de Lula, Janja, em frente a um altar de candomblé foi postada como prova dos valores não-cristãos do casal. A reação do PT foi errática.
O comando da campanha de Lula debate a questão evangélica por meses. Primeiro tentaram reabrir contatos com antigos aliados no segmento, mas após vários fracassos concluíram que o melhor seria falar com o público evangélico através da pauta econômica e das comparações dos dois governos. A postura olímpica não aguentou uma semana de embate.
Bastava ter lido o ótimo “A religião distrai os pobres? O voto econômico de joelhos para a moral e os bons costumes”, do cientista político Victor Araújo, que mostra como os pentecostais se preocupam mais com a dimensão moral do que com a econômica na escolha dos candidatos. Diante deste desafio, argumenta Araújo, “os partidos de esquerda têm como primeira opção tentar enfraquecer a pauta moral e recolocar no centro do debate a dimensão de renda. Neste caso, existe o risco de perder apoio da parcela mais conservadora do eleitorado que não segue a lógica econômica do voto. Uma segunda opção é tentar se distanciar de pautas mais progressistas que possam minar o apoio eleitoral dos pobres conservadores, mas surge o obstáculo de perder apoio entre os eleitores de renda média com maior escolaridade (bem como de parte da militância organizada e representantes de maiorias minorizadas, como negros e mulheres, mais afetadas por uma agenda conservadora moralizante). Uma terceira opção é acirrar a polarização nas eleições, explorando a identidade religiosa do eleitorado. Por exemplo, os partidos de esquerda podem mobilizar parte do eleitorado religioso em seu favor por meio de um discurso identitário-religioso. Mas o sucesso dessa estratégia depende do crescimento de longo prazo dos grupos religiosos que rivalizam nas eleições. No caso brasileiro, mobilizar o eleitorado católico contra o eleitorado evangélico pentecostal não seria muito inteligente, dado que este grupo será maioria na próxima década”.
Nos três discursos da semana, em São Bernardo, Belo Horizonte e São Paulo, Lula usou o léxico pentecostal para atacar Bolsonaro.
“Ele é um presidente que mente para os evangélicos todo santo dia. Vocês sabem quem criou a lei que garantiu a existência do Dia (da Marcha) de Jesus foi no meu governo. Ele está tentando manipular. Ele, na verdade, é um fariseu. Está tentando manipular a boa fé de homens e mulheres evangélicas que vão à igreja tratar da sua fé, tratar da sua espiritualidade, e eles ficam contando mentira o tempo inteiro”.
Nos três discursos, Lula falou para plateias completamente petistas e majoritariamente não-evangélicas. Foi um tiro n’água. Apenas mostrou que ainda não sabe como reagir de forma efetiva.
Em entrevista a O Globo, o deputado federal evangélico André Janones, que apoia Lula, criticou o discurso. “Lula é católico e tem suas convicções pessoais, talvez no momento dessa fala tenha dado vazão a esse lado. Agora, falando como alguém que conhece o funcionamento de redes sociais, eu não acho a melhor estratégia você rebater fake news. Você combate puxando outro assunto. Está o bolsonarismo inventando que Lula vai fechar igreja, aí eu vou construir outro ambiente de rede, orientar a militância a falar o seguinte. “Com o Bolsonaro, o auxílio emergencial, os R$ 200 que foram acrescidos aos R$ 400 do Auxílio Brasil, vai acabar em 2023”. Você deixa de ser pautado e passa a pautar”.
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O voto evangélico é um enigma no Brasil por falta de dados. Sem Censo desde 2010, as empresas de pesquisas informam a porcentagem de evangélicos entre os seus entrevistados sem que este seja um fator de controle. Isso faz com que no Datafolha, os evangélicos sejam 25%; no IPEC 28%; Ipespe 24%; Quaest 28% e Futura 27%, mas as lideranças evangélicas afirmam ser 35% da população.
Ao mesmo tempo há o quebra-cabeça do comparecimento. Como tradicionalmente 30% do eleitorado registrado não vota, não está claro se entre os eleitores a proporção de evangélicos seja maior que na população em geral por estarem supostamente mais engajados em eleger os seus representantes. Dos 513 deputados federais, 220 se identificam como evangélicos.