Review – ‘The Knick’, primeira temporada
A descrição de personagens pode conter Spoilers. Entre agosto e outubro, o canal Cinemax exibiu a primeira temporada de The Knick, série criada por Jack Amiel e Michael Begler, com direção e produção de Steven Soderbergh. No Brasil, ela chegou pelo canal Max e atualmente está disponível no Now. O Cinemax, canal do grupo HBO, ainda está […]

A descrição de personagens pode conter Spoilers.
Entre agosto e outubro, o canal Cinemax exibiu a primeira temporada de The Knick, série criada por Jack Amiel e Michael Begler, com direção e produção de Steven Soderbergh. No Brasil, ela chegou pelo canal Max e atualmente está disponível no Now.
O Cinemax, canal do grupo HBO, ainda está dando seus primeiros passos na produção de séries ficcionais, embora tenha iniciado neste formato entre as décadas de 1980 e 1990. Neste período, o canal se dedicava à produção de séries eróticas. Sem abandonar este gênero, o Cinemax começou a investir em séries dramáticas em 2011, quando entrou como coprodutor da segunda temporada de Strike Back, série britânica. No mesmo ano, ele se tornou coprodutor de Hunted, outra produção inglesa, a qual ele tentou resgatar depois que a BBC cancelou a série (até o momento não há nenhuma informação que confirme o retorno desta produção). A primeira produção original do Cinemax, ou seja, sem coprodução de outro canal, é Banshee, série que não teve uma grande receptividade crítica, mas que conseguiu gerar fãs, mantendo sua audiência.
The Knick é a segunda série original do canal e a primeira a conquistar o público e ter boa aceitação da crítica. A série não oferece personagens intrigantes ou profundos, nem situações que gerem ansiedade do telespectador para saber o que vai acontecer em seguida. Na verdade, os personagens sequer conduzem a história. Eles estão à mercê do tema, reagindo às situações que são criadas pelos roteiristas para desenvolver a proposta da série. O que torna The Knick uma produção que vale a pena conferir é seu tema.
A série é situada em um hospital que de fato existe. Fundada em 1862 por James Hood Wright, um banqueiro e filantropo, a instituição era conhecida como Manhattan Dispensary, local onde os soldados feridos na guerra civil americana eram tratados. Com o fim da guerra em 1865, ele passou a oferecer tratamento médico gratuito aos pobres, sendo que não tratava casos de alcoolismo, doenças contagiosas ou mentais, nem realizava partos. Mantido como uma instituição de caridade, o hospital era sustentado por doações. Em 1894, com a morte de seu fundador, o hospital mudou o nome para J. Hood Wright Memorial Hospital. No entanto, a mudança levou muitos a acreditarem que a instituição deveria ser sustentada pela família de Wright. Assim sendo, ela passou a ser conhecida como The Knickerbocker Hospital, ou por seu apelido, The Knick.
A história da série é ficcional, mas situações e personagens foram inspiradas na vida real. Clive Owen interpreta o Dr. John Thackery, mais conhecido como Thack, chefe de cirurgia do The Knick. Respeitado e admirado pelos colegas que sonham em realizar cirurgias ao seu lado, Thack esconde de todos seu vício por cocaína, a qual ele injeta diariamente para conseguir realizar as tarefas que seu cargo exige. Mais do que isso, Thack deseja tanto se tornar um médico melhor e descobrir novas e melhores formas de exercer sua profissão que tem dificuldades de aguentar seu próprio nível de exigência e de lidar com as frustrações que sofre com cada erro ou perda.
Segundo Owen em entrevistas, seu personagem foi inspirado no Dr. William Stewart Halsted. Considerado um profissional brilhante, ele realizou diversos procedimentos considerados arriscados e inéditos em sua época, que levaram a algumas descobertas na área médica. No entanto, Halsted era um voraz consumidor de diferentes tipos de drogas, entre elas, a cocaína líquida, que na época era considerada um anestésico. Ignorando os efeitos que o uso prolongado da droga causa no corpo humano, Halsted se tornou um viciado. Entre 1885 e 1886, ele se internou no Butler Hospital para tratar da dependência da cocaína. Para tanto, ele foi submetido a um tratamento com morfina. Como resultado, ele se tornou viciado em cocaína e em morfina. Isto não o impediu de continuar trabalhando ou realizando procedimentos pioneiros. Halsted faleceu em 1922, aos 70 anos de idade, de complicações causadas por pedras na vesícula. Não consta em sua biografia que ele tenha trabalhado no The Knick.
Neste primeiro momento, o Dr. Thackery é um viciado em cocaína que se dedica inteiramente ao trabalho. Quando a série tem início, ele assume o cargo de chefe de cirurgia depois que seu amigo e mentor, o Dr. J. M. Christiansen (Matt Frewer) comete suicídio. Ele escolhe o Dr. Everett Gallinger (Eric Johnson) como seu médico assistente, mas a direção do hospital está mais interessada em contratar o Dr. Algernon Edwards (Andre Holland), um médico que estudou na França, onde chegou a publicar artigos importantes sobre medicina, em coautoria com outros nomes conhecidos.
Acontece que Edwards é negro e, por isso, não é tratado como um colega pelos demais médicos, em especial o Dr. Gallinger. Para Thack, a cor de Edwards não importa de fato, mas ele sabe que terá dificuldades de exercer seu trabalho se o ambiente do hospital ficar preso às tensões raciais. Assim, mantém Edwards a uma distância segura, depois de tentar em vão conseguir sua demissão.
Edwards é um homem determinado, que já está acostumado a lidar com o preconceito. Seus pais trabalham na casa do Capitão August Robertson (Grainger Hines), onde Edwards cresceu ao lado de Cornelia (Juliet Rylance), filha do Capitão que agora trabalha na direção do hospital. Ela e seu pai tomaram a decisão de contratar Edwards, mesmo sabendo que ele teria dificuldades de ser aceito por médicos, enfermeiras ou pacientes.
Além de Thack, Gallinger e Edwards, a equipe médica também é formada pelo Dr. Bertram Chickering Jr. (Michael Angarano), mais conhecido como Bertie. Filho de um médico que atende os ricos, Bertie sofre constantes pressões do pai para abandonar seu trabalho no The Knick. Além de idolatrar Thack, Bertie tem outro motivo para continuar no hospital. Seu nome é Lucy Elkins (Eve Hewson), uma enfermeira que está apaixonada por Thack.
Quando Edwards é colocado a escanteio, fazendo trabalhos de enfermeiro, ele decide montar uma clínica clandestina para atender pacientes de cor. Com esta situação, os roteiristas exploram não apenas os casos médicos x precariedade do período, mas também a questão relacionada ao preconceito racial no trabalho de um médico. Edwards é tão inteligente e brilhante quanto Thack, com a diferença que não faz uso de drogas para se manter ativo. No entanto, em função de sua cor, suas opiniões e técnicas não são facilmente aceitas por seus colegas. Mesmo os pacientes de cor têm um certo receio de confiar totalmente em Edwards, embora essa atitude tenha mais a ver com o fato de não confiarem em médicos, independente de quem sejam.
Neste primeiro momento, a série acompanha quatro histórias. Além da trajetória de Thack e de Edwards, o telespectador também é apresentado a Herman Barrow (Jeremy Bobb) e à Irmã Harriet (Cara Seymour). Barrow é o admnistrador do Knick. Responsável por controlar as finanças do hospital, ele lida com um orçamento apertado, corre atrás de mais doações, e tenta controlar os gastos. A história de Barrow é a mais fraca, ao menos neste momento. Isto porque ela foge à proposta da série, que é a de mostrar a situação da medicina no início do Século XX.
Enquanto que, através dos cirurgiões e enfermeiras temos uma amostra de como era o tratamento médico naquele período, a série falha em trabalhar na mesma medida a visão do admnistrador de um hospital. Embora tenhamos situações que apresentam administração vs. tratamento médico, elas aparecem apenas como um registro do ambiente.
Barrow é desperdiçado pelos roteiristas, que preferiram tirá-lo do ambiente tema da série para criar uma situação banal e, aparentemente, desnecessária. Devendo dinheiro para Bunky Collier (Danny Hoch), um agiota, ele desvia recursos do hospital. Tentando encobrir o rombo, Barrow corta despesas, contrata serviços mais baratos e compra material de segunda mão.
O problema é que a história não se aprofunda nas consequências destes desvios porque os roteiristas preferem acompanhar Barrow em suas visitas a uma prostituta, e mostrar como o agiota lida com os clientes que lhe devem dinheiro. A solução que Barrow encontra para se livrar de Collier sugere que, na segunda temporada, continuaremos a nos afastar da admnistração do hospital para acompanharmos a relação de Barrow com o mundo do crime do início do Século XX.
A história mais interessante neste primeira temporada é a da Irmã Harriet. Imigrante irlandesa, Harriet é uma freira católica que oferece seus serviços como parteira. Trabalhando em um orfanato, ela também tenta encontrar famílias dispostas a adotar as crianças abandonadas ou órfãs. Em paralelo, ela realiza abortos clandestinos, como uma forma de controle de natalidade e de ajudar mulheres que não desejam dar continuidade à gravidez.
A personagem é belíssima! Harriet tem plena consciência da situação da mulher na sociedade em que vive, bem como da precariedade da medicina, visto que muitas mulheres ainda morrem durante a gestação ou no parto. Por outro lado, como freira católica, ela conhece a opinião da igreja a respeito do aborto. Mesmo assim, ela não demonstra qualquer conflito moral ou profissional em relação aos abortos que realiza. Em seu dia a dia, ela vê como as crianças abandonadas ou órfãs são tratadas e como elas crescem quando não são adotadas. É uma pena que a série não aprofunde a história da personagem, nos mostrando sua vida no orfanato e explorando as situações que as mulheres grávidas vivem, bem como as questões morais que surgem daí.
As atividades clandestinas de Harriet a levam a se associar a Tom Cleary (Chris Sullivan), condutor de ambulância que costuma roubar dinheiro e jóias de pacientes, bem como vender cadáveres frescos para hospitais. Embora seja, inicialmente, contra abortos, ele vê nesta atividade uma forma de ganhar sua porcentagem e evitar a morte prematura de mulheres que tentam se livrar por conta própria de uma gravidez. A cumplicidade que surge entre Cleary e Harriet também é muito bonita de se ver. Cada um tem uma opinião muito própria sobre o que faz. Eles também não escondem a opinião que têm um do outro. Mas os dois têm consciência da difícil trajetória de cada um, o que os fazem entender que não têm o direito de julgar um ao outro.
Ao longo de dez episódios produzidos para a primeira temporada, The Knick utiliza boa parte deles para mostrar como os médicos lidavam com a precariedade da época (sendo que não podemos descartar aqui a possibilidade da série fazer uso de anacronismo para retratar alguns casos). Em diversos momentos temos situações criadas unicamente para expor a forma como uma doença era tratada, sem que o personagem ou a situação tenha continuidade na trama. Ao apresentar estes casos, The Knick é uma série médica procedural que lida com diferentes casos, mas sem o aparato moderno que vemos em outras produções do gênero situadas nos dias atuais. Algumas questões sociais que levam à casos específicos tratados pelos médicos, ou pela administração do hospital, também são apresentadas de forma rápida, como um registro do período.
O final da temporada sugere que a segunda, já anunciada, seguirá o mesmo caminho que foi adotado pela série neste primeiro momento, ou seja, continuaremos a ver situações criadas unicamente para expor uma questão social ou médica da época, inserida na trajetória de um dos personagens (não importa qual). A expectativa é a de que os roteiristas percebam a necessidade de abandonar o uso de amostragem de temas polêmicos da época para focar na personalidade e trajetória de cada personagem. Seria mais interessante se a série pudesse reduzir as situações propostas a um número que lhe permitisse aprofundar a questão, detalhando seu desdobramento.
The Knick é uma produção da Anonymous Content.
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