Na série ‘Pinguim’, ressentimento vira combustível de vilão de Batman
Um irreconhecível Colin Farrell empresta seu talento a uma tarefa fascinante: a desconstrução da psicologia do notório personagem
Após matar a tiros o herdeiro da família mafiosa que domina Gotham, Oswald Cobb (Colin Farrell) deixa a cena do crime muito perturbado — para azar do adolescente Victor (Rhenzy Feliz), que tentava furtar os pneus de seu carro com colegas e acaba sendo pego pelo bandido em fuga. Sinistro e implacável, Oz poderia executar o moleque a sangue frio na hora. Mas algo então acontece: o protagonista que dá nome à minissérie da HBO Pinguim, cujo primeiro episódio está disponível na Max — os próximos sete serão exibidos semanalmente aos domingos, a partir de 29 de setembro —, se afeiçoa de cara pelo ladrãozinho, e o impele a ajudá-lo numa tarefa: dar fim ao corpo do filho do tal chefão. Assim como o jovem, o temível Pinguim é alguém que veio de baixo e tem poucas qualidades aparentes a exibir — pelo contrário.
Com seu rosto eivado de cicatrizes, e manco de uma perna, o violento Oz é também um sujeito inseguro. Logo depois de assassinar o herdeiro, corre de volta para casa e encontra sua mãe, levando Vic a tiracolo. Ao chegar lá, Pinguim diz que eles precisam fugir para um lugar seguro, por medo da vingança da irmã do morto, a psicopata Sofia Falcone (Cristin Milioti). Com a demência se insinuando devido à idade avançada, mas ainda lúcida, Francis (Deirdre O’Connell), mãe do Pinguim, aconselha o filho: “O que você fez não foi impulso, foi instinto. Você o matou porque queria. Essa cidade está destinada a ser sua. O que vai fazer para conquistá-la?”. Com o incentivo materno (e freudiano), Oz então usará de lábia e violência para trilhar seu caminho até o poder.
Imperador Pinguim: Coleção Lendas Do Batman
Derivada do filme Batman (2022), dirigido por Matt Reeves e estrelado por Robert Pattinson, a nova minissérie traz o irlandês Colin Farrell mais uma vez na pele do vilão. O astro tem atuação brilhante e aparece irreconhecível debaixo de tantas próteses e maquiagens. A produção atesta a força de um filão de histórias que vão na contramão das tramas — tão saturadas atualmente — de super-heróis, ao investir numa visão humanizada e reveladora do outro lado do balcão: os vilões que há muito habitam o imaginário do público, mas quase sempre ganharam retratos caricatos e superficiais em seriados e filmes do passado. A série reafirma como o universo clássico de Batman é fértil para esse tipo de releitura da alma dos malfeitores — antes dela, o sucesso Coringa (2019) se notabilizou ao ilustrar as marcas psicológicas que fizeram o palhaço Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) virar um vilão cruel.
Se os desvios de personalidade explorados de forma esperta em Coringa eram os traumas vastos e cavilosos que nutriam o comportamento caótico do bandido, a série sobre o Pinguim lida com um substrato mais sutil. O personagem é um sujeito que veio de baixo e, como tal, exibe os recalques de alguém que não se conforma com sua condição e transforma a revolta em combustível para a crueldade. A maldade emana, em suma, de sua visão distorcida sobre como ascender socialmente. Diretor dos primeiros três episódios de Pinguim e de outros trabalhos marcantes, como Mare of Easttown, o americano Craig Zobel é feliz ao captar a complexa teia de ressentimentos por baixo da carranca de Oz — de forma grandiloquente e patética, tudo que o personagem quer é deixar um legado notável no crime, para que as pessoas o admirem. “Consegue imaginar ser lembrado assim, sendo reverenciado?”, divaga o protagonista no primeiro episódio. No fundo, ele só quer ser amado e respeitado, sentimentos que apenas a mãe lhe dá. “Ele é um filhinho de mamãe e um narcisista”, disse Zobel a VEJA (leia a entrevista abaixo).
O cineasta também cumpre o papel de manter a estética suja e sombria estabelecida por Reeves dois anos atrás, já que a história do gângster Pinguim — apelido que vem de sua anomalia no pé esquerdo, que o faz mancar como a ave — se passa uma semana após a destruição da cidade causada por Charada (Paul Dano) nos momentos finais do filme original.
Mas o show é, sobretudo, de Colin Farrell. Só com um esgar no rosto, ele pode denotar valentia, mas também certo temor; ou, do fundo de olhares ameaçadores, trair o mais miserável terror pessoal. Assim, o ator consegue exibir um homem de carne e osso por trás de todo aquele corpulento aparato de maquiagem. A relação com a mãe e o jovem Vic, que perdeu tudo nas enchentes em Gotham City, resume as nuances da série. “Ele se importa com as pessoas, mas tem um jeito peculiar de demonstrar isso”, diz o ator Rhenzy Feliz. Vilões também sofrem — para deleite dos espectadores.
“A perspectiva do mal é divertida”
Diretor de Pinguim e de séries como Mare of Easttown, Craig Zobel, 49 anos, fala a VEJA por que as histórias de vilões são tão atrativas.
Nessa minissérie, julgou ser importante mostrar a origem da maldade de Oz Cobb? Sim. Esse é um personagem mafioso, então, claro que ele faz coisas ruins. Mas a história mostra como ele deixou de ser uma pessoa que ainda tinha um pouco de humanidade, até perder o último fio dela.
Por que o público gosta tanto de histórias que humanizam os vilões? A história do anti-herói é muito interessante. É divertido poder ver uma narrativa pela perspectiva do vilão, acho um exercício fascinante.
Como define a personalidade de Oz na série? Ele é um filhinho de mamãe e um narcisista, que usa sua lábia para tentar vencer na vida e no crime.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911