Série ‘The First Lady’ faz justiça às mulheres de presidentes americanos
A novidade do Paramount+ mostra a história de três primeiras-damas que superaram o marido em popularidade — e até relevância

Uma antiga tradição marca a troca de presidentes nos Estados Unidos. Cordial, a família do mandatário recebe a do futuro chefe de Estado para um tour pela Casa Branca — cortesia que Donald Trump se recusou a oferecer ao atual presidente, Joe Biden. Na visita, a primeira-dama logo fica ciente de sua incumbência inicial: é dela a decisão sobre a decoração dos cômodos sociais e dos quartos da família — localizados no núcleo central do prédio histórico, enquanto o presidente trabalha em um anexo separado, na Ala Oeste. A tarefa frugal é carregada de simbolismo. Sem poderes políticos, cargo oficial nem salário, a mulher do presidente carrega consigo a missão de representar o modelo da esposa gentil e asseada — logo, capaz de transformar até o epicentro político do mundo em um lar. O protocolo é, para muitas, um choque de realidade: ativas nas campanhas presidenciais, com formação brilhante e opiniões fortes, essas mulheres são reduzidas a parte da decoração — assim como o papel de parede que terão de escolher.

Todas as mulheres dos presidentes
The First Lady, série que chega ao streaming do Paramount+ na segunda-feira 18, descortina os bastidores da célebre residência e ilumina a história de três proeminentes primeiras-damas, Michelle Obama (vivida por uma inspirada Viola Davis), Betty Ford (Michelle Pfeiffer, ótima) e Eleanor Roosevelt (Gillian Anderson, um tanto caricata) — outras temporadas trarão diferentes primeiras-damas ao protagonismo. Movida pela mais mundana das curiosidades, aquela de destrinchar a intimidade da vida alheia, a série dirigida pela dinamarquesa Susanne Bier (The Undoing) se vale, em dez episódios, de pitadas folhetinescas para observar a dinâmica dos ilustres casais. Sua força, porém, reside na inversão de lentes sobre a história. Ao tirar as câmeras do gabinete do presidente para focá-las na visão dessas mulheres sobre acontecimentos como a Grande Depressão ou o assassinato de Martin Luther King Jr., The First Lady desconstrói o velho clichê machista que diz “Por trás de um grande homem há uma grande mulher”. Mesmo “grandes”, essas mulheres estavam fadadas a ser ofuscadas por seus homens notáveis — mas as três retratadas na série os superaram em popularidade e até relevância. O exemplo de Eleanor Roosevelt (1884-1962) é eloquente. Mulher do ex-presidente Franklin D. Roosevelt (1882-1945), no poder entre 1933 e 1945, Eleanor não só forjou os moldes do que viria a ser o papel de uma primeira-dama com voz ativa como alcançou prestígio mundial com ações humanitárias — contribuiu, aliás, para a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da ONU. Habilidosa em fazer discursos inflamados e empática — ativo caro na tenebrosa crise econômica dos anos 1930 —, ela foi uma peça essencial durante os três mandatos de Franklin. Com a paralisia do marido, vítima da poliomielite, Eleanor se transformou em representante oficial dele em viagens e no contato com o povo.

Michelle Obama. A Primeira-Dama da Esperança
A desenvoltura de Eleanor foi elevada à décima potência em 1974, quando Betty Ford (1918-2011) caiu de paraquedas na Casa Branca. Esposa de Gerald Ford (1913-2006), que assumiu a Presidência após a queda de Richard Nixon com o escândalo de Watergate, Betty foi primeira-dama por três anos, o suficiente para fazer dela uma figura histórica admirada por democratas e republicanos — partido do qual seu marido era membro. Ex-bailarina e divorciada, Betty quebrava protocolo atrás de protocolo. Para a conservadora equipe do marido, o maior pecado de Betty era falar. Sem filtros, ela defendeu pautas como o casamento gay e a igualdade de direito entre gêneros. Falou abertamente sobre a luta contra um câncer de mama, incentivando mulheres a realizar exames preventivos. Com a mesma honestidade, revelou seu vício em álcool, o que resultou em um centro médico com seu nome voltado para mulheres dependentes químicas.

Mais de trinta anos depois, Michelle Obama chegou à mesma Casa Branca antes ocupada por Eleanor e Betty. Advogada respeitada, a esposa de Obama foi engolida pela campanha eleitoral, provocando os mais diversos ânimos, desde devoção calorosa até críticas ferozes — e não raro embebidas de machismo e racismo. Sob vigilância das redes sociais, que ganharam força durante o mandato de Obama, Michelle virou celebridade — condição que manteve e até ampliou após a saída do marido. Curiosamente, ela também deparou com a tarefa entregue às antecessoras: a decoração da residência oficial. Em seguida, a equipe de marketing sugeriu que se dedicasse a plantar uma horta nos jardins para mostrar um lado, por assim dizer, idílico de sua personalidade. Michelle ficou furiosa, mas acabou cedendo ao notar que poderia fazer da alimentação saudável uma bandeira. Descascar abacaxis, afinal, é uma sina das primeiras-damas.
Publicado em VEJA de 20 de abril de 2022, edição nº 2785
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