Pesadelo da classe média se aprofunda em nova temporada de ‘Os Outros’
Com nova disputa entre habitantes de um condomínio no Rio, a série amplia seu retrato mordaz da classe média em sua segunda temporada no Globoplay
Ao lado do marido, Raquel (Leticia Colin) acorda irritada com o barulho estridente de uma serra elétrica vindo do vizinho, que tenta arrancar uma árvore de sua propriedade recém-comprada, uma mansão num condomínio na Barra da Tijuca, no Rio. A corretora de imóveis bate à porta do novo morador para exigir que ele pare de cortar a árvore que dá privacidade à sua casa, bloqueando a visão da rua — mas ele se recusa. É aí que Raquel conhece seu novo vizinho, Sérgio (Eduardo Sterblitch), miliciano que acabou de ser eleito vereador e carrega para o novo endereço não apenas sua sombra mafiosa, mas a disposição infinita para arranjar encrenca com “madames” como Raquel — que, em contrapartida, tentará de tudo para expulsá-lo do condomínio.
A classe média no espelho – Jessé Souza
A segunda temporada de Os Outros, que acaba de estrear no Globoplay, mantém a característica que fez dela uma das séries nacionais mais vibrantes de 2023: é um retrato instrutivo dos dilemas e contradições da classe média. Um segmento que, emparedado entre as mazelas sociais e a radicalização que extravasou da política para todas as esferas da vida, aqui descamba para atitudes perigosas — como bem sabe Cibele (Adriana Esteves), ex-vizinha do vereador miliciano com quem ele colidira na primeira temporada de Os Outros e que agora busca respostas sobre o paradeiro de seu filho, Marcinho (Antonio Haddad), desaparecido desde que foi sequestrado pelo bandido. Na segunda fase da série criada por Lucas Paraizo, os conflitos ganham tons ainda mais dramáticos e derivam em pesadelo psicológico. “Continua sendo uma história de intolerância, mas agora em novo espaço”, disse o autor a VEJA.
Palavra de roteirista – Lucas Paraizo
Ao se transferir das torres de apartamentos para um novo ambiente de casas de luxo, a série aprofunda um comentário mordaz sobre a vida no país que já se delineava anteriormente. É a sensação, muito real e premente desde as camadas carentes até a elite, mas particularmente intensa para a classe média, de que não há para onde correr: em qualquer lugar no qual se viva, mesmo sob a suposta segurança de um condomínio, a insegurança e as tensões estarão sempre à espreita. Enquanto o vilão de Sterblitch tenta manter a aparência de homem de família junto com a esposa e a filha adolescente, Lorraine (Gi Fernandes), que acabou de parir seu neto, Raquel é casada com um personal trainer e visa a todo custo engravidar, mantendo um grupo religioso que se encontra em sua casa para orações e louvores. Mas as atitudes aparentemente inofensivas dos dois vizinhos escondem algo além e vão desencadear situações caóticas.
Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam – Juliano Spyer
Por meio da personagem defendida com brio por Leticia Colin, um dos objetivos do criador nessa nova fase da série é também falar da fé. Ainda que a religião de Raquel não fique explícita, os indícios sugerem que seja evangélica. “Vivemos em um país cada vez mais cristão, mas a representação desses personagens tem sido pouco complexa. Quis trazer alguém diferente”, diz Paraizo. Essa visão da crença, imersa em um microcosmo conturbado, acaba expondo, claro, as incoerências da mãe de família recatada. Mas, indo além dela, serve também para colocar em questão a ideia de perdão — religioso ou social. O miliciano Sérgio ilustra como o desejo de conceder a alguém uma nova chance é louvável, mas nem sempre razoável — no Brasil, pode confundir-se com impunidade. Ele foi preso por vários crimes, inocentado de forma suspeita e virou político. “Há situações que nos levam ao extremo, e a série nos mostra se é possível viver o conceito do perdão certas vezes”, diz Leticia. Até sob a proteção de muros, o inimigo pode morar ao lado.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906