‘Último Ato’ revela bastidores da caçada ao assassino de Abraham Lincoln
Ao narrar a impiedosa caçada, a série expõe a penosa reconstrução da democracia dos Estados Unidos após a guerra civil
Na noite de 14 de abril de 1865, cinco dias após o fim da Guerra de Secessão, o então vitorioso presidente americano Abraham Lincoln (1809-1865) e sua esposa, Mary, se dirigiram ao Ford’s Theatre, em Washington, para assistir à peça Our American Cousin. Além do casal, estavam no camarote o major Henry Rathbone e sua noiva, Clara Harris, que presenciaram um dos momentos mais decisivos — e assustadores — da história dos Estados Unidos. Pouco depois das 22 horas, enquanto a plateia ria em coro, o ator John Wilkes Booth (1838-1865) — que não estava no elenco — se posicionou atrás da cortina do camarote e desferiu um tiro na nuca de Lincoln. Após o atentado, bradou frases como “liberdade para o sul” e “assim sempre aos tiranos”, fugindo do local em seguida. Gravemente ferido, Lincoln morreu poucas horas depois, e iniciou-se uma caçada a seu assassino. A corrida para capturar Booth e todos que participaram do plano conspiratório é apresentada na afiada Último Ato, série da Apple TV+ que acaba de chegar ao streaming, com episódios semanais às sextas-feiras.
Inspirada no livro A Caçada ao Assassino de Lincoln: 12 Dias que Abalaram os EUA (Record), do historiador James L. Swanson, a trama da Apple é o exemplar mais recente de um filão vigoroso na plataforma: a ficção histórica que ilumina figuras e momentos importantes dos Estados Unidos, extraindo do passado lições valiosas para o presente. Recentemente, Mestres do Ar levou para as telas a história do 100º Grupo de Bombardeiros, aviadores que combateram os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Em abril, lançará a minissérie Franklin, focada na influência que Benjamin Franklin e sua aliança com os iluministas franceses teve na independência americana. No mês seguinte, chega The Big Cigar, drama que narra a fuga do líder dos Panteras Negras, Huey P. Newton, para Cuba.
No caso de Último Ato, a contribuição para se conhecer em profundidade a história americana é dupla: a série retrata os esforços de reconstrução do país nos tempos que se seguiram ao fim da guerra civil e à morte de Lincoln — e expõe a biografia e as ideias tortas de seu assassino. Ator de carreira, Booth (Anthony Boyle) tinha obsessão pela fama, e matar o presidente faria dele um homem conhecido no país. Essa, no entanto, não foi sua única motivação: em uma nação polarizada, Booth era simpatizante ferrenho dos confederados, que estavam revoltados com os esforços de Lincoln pelo fim da escravidão e a promoção de direitos aos negros americanos.
Foi nesse contexto que ele conseguiu angariar um grupo de apoiadores para um plano que, caso desse certo, teria lançado o país no caos: sua intenção era matar não só o presidente, mas também o vice, Andrew Johnson (Glenn Morshower), e o secretário de Estado, William Seward (Larry Pine), deixando os Estados Unidos sem um líder imediato. Mas Booth foi o único a completar a tarefa: Seward foi esfaqueado, mas sobreviveu, e Johnson nem sequer foi ferido — o encarregado de matá-lo teria se embriagado e perdido a coragem de cometer o crime.
O protagonista de fato da série é o secretário da Guerra, Edwin Stanton (Tobias Menzies), braço direito de Lincoln (Hamish Linklater) e líder da operação de caça ao assassino. Com Stanton em sua cola, Booth se escondeu por doze dias, mas acabou cercado pelas forças da União num celeiro na Virgínia. A ideia era capturá-lo vivo, mas ele foi morto com um tiro na nuca, assim como matara Lincoln. Controverso, o tribunal militar ouviu quase 400 pessoas, entre elas Mary Simms (Lovie Simone), que depôs contra o homem que a escravizou. Ao final, outras oito pessoas foram condenadas por conspiração, quatro à forca e os demais à prisão. Um espião chegou a dizer que o presidente confederado, Jefferson Davis, estava envolvido, mas não havia evidências de que ele tivesse relação com o assassinato.
O que veio a partir daí foi um processo de reconstrução cercado de ameaças: assumindo o cargo após a morte de Lincoln, o vice Johnson perdoou uma série de confederados condenados, inclusive pelo complô que matou seu antecessor, e se opôs a leis que davam direitos aos negros, entrando em rota de colisão com o Congresso — que, felizmente, ratificou a abolição. Johnson quase sofreu um impeachment, mas faltou um voto para que fosse retirado do cargo, e, assim como Donald Trump faria mais de um século depois, se recusou a comparecer à posse do sucessor. Algumas coisas não mudam — e conhecer o passado é um alerta instrutivo.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885