O que é o hate watching, fenômeno que atinge de Vale Tudo às séries
Em sua reta final, novela ilustra o valor do hábito de ver produções só para criticá-las nas redes

Deitado no leito do hospital, o paciente oncológico Afonso (Humberto Carrão) faz uma ligação para a namorada grávida, Solange (Alice Wegmann) — que acabara de ganhar lenços umedecidos de uma das mais de vinte patrocinadoras do remake de Vale Tudo. “Esses produtos eu conheço. A fórmula é natural, né? Não tem nada que faça mal para os bebês”, diz ele, com o gingado natural de quem lê um teleprompter, em mais uma das propagandas no meio da novela que já se tornaram piada generalizada. No X, as reações são velozes. Numa delas, a autora Manuela Dias é chamada de “pirada”. Outro post lamenta: “Que situação”. Nas primeiras doze horas após o capítulo exibido em 2 de setembro, os comentários ridicularizantes sobre a cena já acumulavam mais de 130 000 impressões na rede. Para a Globo e para a marca, o engajamento é ótimo — não à toa, Vale Tudo é recordista de faturamento entre as tramas recentes da emissora. Em sua reta final, o folhetim permanece um fracasso de crítica inegável, mas surfa num fenômeno cada vez mais presente na TV: o hate watching — termo que designa o fascínio por produções televisivas equivocadas, movido pelo prazer obsessivo em falar mal delas nas redes.
A expressão foi cunhada em 2012 pela crítica Emily Nussbaum, da revista New Yorker. Sua inspiração foi a série musical Smash, que primeiro a encantou, mas com o tempo se revelou uma bomba: o elenco se mostrou fraco e as circunstâncias, absurdas. Mas aí já era tarde: ela estava presa aos episódios semanais. Desde então, o hate watching só cresceu e ganhou relevância como indicador do comportamento da audiência. Hoje, sob impulso das redes sociais, impõe-se como um hábito capaz de explicar não só a estranha atração por dramaturgia de má qualidade, mas também o sucesso comercial em casos inexplicáveis. O remake de Vale Tudo demonstra que os espectadores brasileiros não são indiferentes ao apelo do hate watching: do merchan infame de lencinhos a uma trama surreal sobre bebês reborn, a novela provocou tudo, menos indiferença nos últimos meses (leia o quadro). Esse mesmo impulso para consumir a ficção audiovisual com fúria fiel vem garantindo também a repercussão de muitas séries do streaming.

O hate watching provoca reações tão paradoxais no público que já suscita até mesmo investigações acadêmicas no exterior. Um estudo da Universidade da Louisiana em Lafayette publicado em abril passado elenca alguns fatores que dão alento ao espectador quando extravasa o ódio por determinado programa. Entre eles estão o medo de ficar de fora do debate público e, especialmente, um gatilho psicológico: a sensação de superioridade moral em face daquilo que é considerado medíocre. Outra acadêmica da comunicação, Joli Jensen, da Universidade de Tulsa, defende que o hábito confere ao espectador o conforto de se sentir como um expert — as mil comparações de Vale Tudo com a trama original, naturalmente melhor do ponto de vista dos hate watchers, é um exemplo típico dessa espécie de autoempoderamento do espectador. Segundo o periódico European Journal of Social Psychology, a obssessão é explicada, ainda, pela diferença entre o ódio e o simples desagrado — que só estimula a indiferença. Ver tais produções ruins, segundo essa teoria, mexe até mesmo com o metabolismo: as fortes emoções provocadas ao externar a raiva por uma novela ou série podem estimular a liberação de hormônios ligados ao bem-estar, como ocitocina, dopamina e serotonina.
Com o crescimento exponencial do streaming e da oferta de produções ao longo dos últimos quinze anos, plataformas descobriram nesse filão uma maneira de ganhar audiência, já que um público crescente se mostra ávido por consumir e compartilhar material que os enraiveça nas redes sociais. Um dos sucessos lapidares da Netflix nesse sentido é Emily in Paris, série que fala de uma garota fútil vivendo numa Paris que é puro clichê pega-turista (uma das temporadas também fez de Roma sua vítima). O desprezo obsessivo pela protagonista revelou-se um achado: a quarta temporada estreou com 20 milhões de visualizações em sua primeira semana. Já no Prime Video, a galinha dos ovos de ouro no momento é O Verão que Mudou Minha Vida, consumida com afinco (e toneladas de queixas) tanto por fãs adolescentes quanto por adultos consternados com a imaturidade dos personagens. Após a recente conclusão da série, o streaming anunciou um filme.
O hate watching virou um esporte tão quente nas redes sociais que a produção atual não deu conta de tanta sede por detonar séries e afins: dramas teen de outras eras da televisão americana, como Pretty Little Liars e Riverdale, foram redescobertos apenas para ser espinafrados aos olhos críticos de agora. A fúria, contudo, nem sempre é garantia de sucesso. And Just Like That…, continuação de Sex and the City, teve sua primeira temporada embalada pelas comparações ácidas da série com a original. Na segunda, porém, o desespero dos roteiristas em abraçar a agenda politicamente correta foi tão excessivo que nem sequer ódio a produção passou a despertar mais: chegou ao fim em agosto, com audiência melancólica.
Por falar em ibope melancólico, Vale Tudo tem audiência mediana mas estável, com média nacional em torno dos 24 pontos. Para se distanciar de vez da catastrófica novela das 9 anterior, Mania de Você, Manuela Dias aposta num crescendo a partir da anunciada morte de Odete Roitman, prevista para a segunda-feira 6. Entre o amor e o ódio pelo que vem por aí, a novela poderá confirmar o valor de uma velha verdade: falem mal, mas falem de mim.
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2025, edição nº 2964