O cinema chinês mostra sua cara para o mundo – e desafia Hollywood
Com Detetive Chinatown e o hit Ne Zha 2, o país exibe força — e já supera público da indústria americana

O assassinato brutal de uma jovem branca e de um líder indígena deflagra uma onda de ódio contra os imigrantes que vivem em Chinatown, na São Francisco da virada do século XIX. O clima se agrava porque o pai da primeira vítima, um político carrancudo — e xenófobo — interpretado pelo astro americano John Cusack, afirma sem provas que o assassino só pode ser um oriental. Para resolver o crime e chegar aos verdadeiros culpados, um chinês com pinta de Sherlock Holmes, Qin Fu (Liu Haoran), e o filho adotivo do nativo assassinado, Ah Gui (Wang Baoqiang), correm para impedir que um inocente seja condenado injustamente — e também evitar que uma lei racista de exclusão dos chineses seja promulgada nos Estados Unidos. Apesar de se passar num cenário americano, ter um enredo à la Agatha Christie e alguns diálogos em inglês, o filme Detetive Chinatown: o Mistério de 1900 (Detective Chinatown 1900, 2025), atualmente em cartaz no Brasil, ganha novas camadas de significado por um detalhe nada fortuito: trata-se de uma legítima superprodução made in China.

Sucesso de público nos cinemas em seu país de origem, acumulando quase 500 milhões de dólares em bilheteria, Detetive Chinatown não foi filmado na São Francisco verdadeira, mas em um impressionante complexo de estúdios na província chinesa de Shandong, reproduzindo com certa verossimilhança a metrópole americana (embora os indígenas em cena sejam fakes chineses). Ao misturar ação e humor escrachado, cenas de luta absurdas (mas bem coreografadas) com comentários ácidos sobre a cultura americana e sua alegada visão preconceituosa sobre os chineses, o longa resume os esforços do país de Xi Jinping num front sensível da guerra cultural com os Estados Unidos: a meta de fazer de sua indústria do cinema um contraponto poderoso ao domínio de Hollywood nessa seara.
Ao menos no mercado interno da própria China, essa iniciativa já é um êxito. Nos primeiros meses de 2025, os filmes produzidos no país asiático arrecadaram 3,4 bilhões de dólares nos cinemas, ante 2,4 bilhões da indústria americana (leia o quadro). Se no anômalo ano de 2020 os chineses levaram vantagem em razão da pane causada pela pandemia nos cinemas americanos, agora eles exibem pela primeira vez uma dianteira de fato — e robusta. O maior termômetro da tendência é Ne Zha 2, animação lançada em 29 de janeiro que já abocanhou estelares 1,9 bilhão de dólares mundialmente, segundo o site americano Box Office Mojo. Com um orçamento modesto de 80 milhões de dólares — um filme da Pixar não sai por menos de 200 milhões —, Ne Zha 2 é a animação de maior bilheteria da história e ostenta mais que o dobro da arrecadação do longa americano campeão no ano, Um Filme Minecraft.
O sucesso de Ne Zha 2 se assenta não só na história de um garotinho dotado de poderes extraordinários, mas principalmente nos efeitos visuais de ponta — que consumiram o trabalho de 4 000 profissionais chineses ao longo de cinco anos. O uso da computação gráfica também chama a atenção em Creation of the Gods II: Demon Force, outra produção da safra que está enchendo os cofres das produtoras chinesas. A segunda parte da trilogia de fantasia abusa do CGI por um bom motivo: a história épica é repleta de deuses da mitologia chinesa, como o qilin, quimera lendária, e o jiaolong, dragão escamado aquático. Só para concluir o ousado projeto dos três filmes protagonizados pelo astro chinês Yu Shi foi necessário o esforço de 10 000 técnicos.

Os lançamentos recentes são parte de um mercado em expansão e lucrativo. A China tem 82 000 telas de cinema — sendo 34% de propriedade do governo, e o restante pertencente à iniciativa privada. Enquanto isso, os Estados Unidos têm praticamente metade, cerca de 43 000. O crescimento do cinema chinês se sustenta, em boa medida, graças ao protecionismo. Com população de 1,4 bilhão de pessoas, o país só abriu suas salas às produções estrangeiras em 1994, e mesmo assim com cota ínfima de 34 títulos por ano. Nas últimas décadas, porém, o aumento do poder de compra dos chineses, aliado ao maior investimento em superproduções de aventura e ação, arejou a cinematografia local e mostrou seus efeitos.

A produção deve se intensificar no curto prazo e apostar pesado no próximo passo natural: a exportação de suas tramas. Enquanto o país é alvo preferencial dos tarifaços de Donald Trump e assiste de camarote à confusão causada em Hollywood pela ameaça do presidente americano de dificultar a entrada de produções estrangeiras no país, o que pode afetar inclusive as superproduções americanas filmadas no exterior, os chineses vão na surdina absorvendo know-how (inclusive utilizando talentos e rostos conhecidos americanos em seus filmes) e construindo acordos com outros países — no ano passado, o Brasil fechou um intercâmbio com Pequim na área do audiovisual. “Eles querem diminuir a presença de Hollywood justamente por causa dos problemas diplomáticos”, diz Nelson Sato, da Sato Company, empresa responsável por trazer para cá obras asiáticas, principalmente do Japão e da Coreia do Sul, mas que aposta agora em produções chinesas como Terra à Deriva 2: Destino, que chega aos cinemas em 5 de junho, e o próprio Detetive Chinatown. O longa, atualmente em exibição no país, deixa entrever outro dado: essas produções não são de todo inocentes. Ao contrário: vindas de uma ditadura notória pela censura, elas propagam uma visão de mundo pró-China — o filme ressalta, por exemplo, a discriminação dos americanos em relação aos chineses. A Guerra Fria agora é nas telas — e o dragão já roubou a primeira cena.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945