Em ‘Mãe Só tem Duas’, a mulher empoderada chega ao novelão mexicano
Série da Netflix parte da troca de bebês na maternidade para falar sobre as mulheres que se desdobram entre maternidade, família e trabalho

Escapismo em sua forma mais pura, Mãe Só Tem Duas, nova série mexicana da Netflix, combina ingredientes clichês para, em seguida, subvertê-los, resultando em uma trama divertida e inesperada. Logo na cena de abertura, uma enfermeira atrapalhada tira a pulseirinha de dois bebês na hora do banho. Ao devolver as identificações, poxa vida, ela não lembra quem é quem. O jeito? Fazer um uni duni tê e aceitar o resultado nada científico da brincadeira para colocar as pulseiras de volta. Corta para a abertura da série, com uma animação que resume a trama que está por vir: duas mulheres completamente diferentes entre si terão suas bebês trocadas na maternidade, para, em seguida, descobrirem o erro. O resultado será uma convivência forçada, já que, após quatro meses, cada uma se apegou à criança que não era sua, enquanto precisam se readaptar ao bebê novato após a troca oficial.
A empresária bem-sucedida Ana (Ludwika Paleta — que fez a vilã Maria Joaquina na novela Carrossel, entre 1989-90) e a estudante riponga Mariana (Paulina Goto) se veem sob o mesmo teto. Isso porque Mariana amamentava a filha, Valentina, enquanto Ana dava à sua suposta rebenta, Regina, uma mamadeira com fórmula. Após destrocar as meninas, Valentina chora desesperada de fome, o que obriga Mariana a encarar um processo de desmamar a menina, seguido de um convite da ricaça Ana para que ela se mude para sua mansão pelo período de transição.
Estão ali os elementos básicos do velho novelão mexicano: dramas familiares, reviravoltas rocambolescas e um humor pueril, que diverte sem exigir muito do espectador. A série, porém, também mostra ser uma evolução do gênero — para além de seu formato mais enxuto de um seriado e de ter como casa uma plataforma de streaming, costumeiramente mais ousada que a TV aberta. Mas uma rápida comparação com os títulos mexicanos hoje em exibição na faixa vespertina do SBT, as sofríveis Triunfo do Amor e Quando me Apaixono, ambas originalmente de 2010, mostra o trato da dramaturgia do país com suas mulheres. Nestes dois folhetins, mulheres geralmente são frágeis ou enganadas pelo homem, enquanto buscam o marido rico e salvador da pátria; boa parte dos relacionamentos flerta com a categoria abusivo; e o gênero feminino está sempre em pé de guerra entre si. Estes excessos ultrapassados não são vistos em Mãe Só Tem Duas, assim como outros elementos da cartilha mexicana. Sai a vilã supermalvada (que acaba louca ou morta no final) e entram como antagonistas as limitações de cada uma das duas protagonistas. Cai também o estereótipo do homem todo poderoso, que emula um príncipe encantado moderno, pronto para salvar a pobre jovem mexicana, e ganham espaço homens reais, com crises sobre a paternidade e os relacionamentos.


Ana e Mariana aos poucos superam o embate geracional e social e passam a apoiar uma a outra. Mariana tem uma mãe amalucada com problemas financeiros, um pai ausente, um ex-namorado que, após abandoná-la, agora quer reconhecer a filha, e uma namorada que não se sente amada como queria. Ana é controladora, está em crise no casamento, tem dois outros filhos para cuidar e está sendo ameaçada por um rapaz mais jovem que quer puxar seu tapete no trabalho. Constantemente, este concorrente usa a necessidade de Ana de cuidar de uma criança como uma falha em sua capacidade produtiva no trabalho. Em casa, ela ainda tem de ouvir do marido reclamações sobre trabalhar demais e que deveria se dedicar mais aos filhos. Há muitas “Anas” por aí. E que bom que uma série aparentemente bobinha se proponha a apontar para o problema. Um belo adeus a era da Maria do Bairro.