De Sandman a Harry Potter, tramas carregam chagas de artistas cancelados
Nova onda assombra Hollywood

Em julho de 2024, um podcast investigativo britânico trouxe à luz a história de duas mulheres que acusavam o escritor Neil Gaiman de assédio sexual. A revelação surpreendeu fãs e colegas de trabalho, entre eles a imensa equipe da série Sandman: baseada na graphic novel de Gaiman, a superprodução da Netflix estava a apenas três semanas de encerrar as gravações da segunda temporada. Na continuação da trama de fantasia lançada em 2022, o protagonista Morpheus (Tom Sturridge), o Mestre dos Sonhos, reconstruiu seu reino destruído e, agora, vai ao inferno, onde Lúcifer (Gwendoline Christie) lhe fará uma proposta perigosa. De forma metafórica, na vida real, Gaiman também foi ao inferno — e por lá ficou quando novas vítimas surgiram com evidências contundentes: até o momento, nove mulheres vieram a público contra o autor de 64 anos. A Netflix, então, se viu diante de dois caminhos. De um lado, a plataforma poderia cancelar o lançamento da segunda temporada para evitar críticas e perda de assinantes — e jogar fora o investimento de 180 milhões de dólares. A outra opção pareceu mais nobre (e lucrativa): honrar o trabalho de uma equipe de 1 000 pessoas e atender ao anseio dos espectadores que aguardam por novos episódios. “Sei que a Netflix pensou: ‘Gastamos dois anos fazendo isso. Temos esses atores, roteiristas e diretores envolvidos. Se não for ao ar, eles não serão recompensados pelo trabalho’. Então, decidimos deixar que a série fale por si”, afirmou o produtor David S. Goyer. O resultado poderá ser visto na plataforma a partir de quinta-feira 3, quando sai a primeira parte da nova temporada, seguida por um segundo pacote, no dia 24, e um episódio especial no dia 31, que colocará um fim definitivo no programa — a Netflix diz que o plano era encerrar com duas temporadas, mas o timing do anúncio é no mínimo suspeito.
O caso ilustra o momento complexo e inédito pelo qual passa a indústria do entretenimento: após uma fase embalada pelo movimento #MeToo, na qual a revelação do passado sujo de celebridades e executivos do setor culminou em condenações e demissões — e até redenções, caso do ator Kevin Spacey, que voltou ao trabalho após ser inocentado das denúncias de assédio contra rapazes menores de idade —, agora produções gigantescas em andamento acabam na berlinda quando uma de suas peças criativas fundamentais é envolta em acusações criminosas, ou se embrenha em ideias e ideologias controversas.

Os estúdios logo se veem obrigados a se afastar dessas personalidades, às vezes antes até de um veredicto da Justiça. Trata-se de uma punição simbólica ao artista, que passa a mensagem de que tais empresas se solidarizam com as vítimas — postura que evita uma crise de imagem e boicotes. Milhões de dólares correm rio abaixo — mas a corda arrebenta mesmo no lado mais fraco: uma enorme cadeia de profissionais vira dano colateral e paga o preço por tabela.
A Marvel e sua trupe de heróis encararam esse golpe quando o estúdio demitiu o ator Jonathan Majors, condenado por violência doméstica, em 2023. Intérprete do vilão Kang, uma espécie de novo Thanos, Majors era peça essencial do futuro da Marvel, que precisou reorganizar os planos sem ele: dois filmes com os Vingadores, que chegariam aos cinemas neste ano, foram cancelados. Há ainda produções que entraram em um limbo sem sinal de luz, como a sequência de É Assim que Acaba (2024), baseado na obra de Colleen Hoover, que está indeterminadamente suspensa enquanto a atriz Blake Lively e o diretor e produtor Justin Baldoni, que detém os direitos do título de imenso sucesso editorial, travam uma briga judicial tensa: ela o acusa de assédio, ele a processou de volta por difamação.

Em um campo mais nebuloso, a autora inglesa J.K. Rowling, criadora da amada saga juvenil Harry Potter, assumiu uma postura transfóbica que, apesar de não ser um crime, decepcionou muitos fãs. Seu cancelamento nas redes sociais veio seguido do posicionamento contrário dos atores da saga, que soma 7,7 bilhões de dólares em bilheteria. No momento, a mesma postura é exigida do novo elenco que acaba de ser anunciado para a produção de uma série de TV da HBO que tem J.K. como produtora-executiva. John Lithgow, o novo Dumbledore, é do tipo que separa o artista da obra: ele recusou conselhos para desistir do papel e não vê uma ligação das ideias da autora com a nova série. Para não deixar dúvidas, o inglês Paapa Essiedu, que será Snape, assinou um manifesto em apoio à comunidade trans. Houve quem pedisse a cabeça dele para J.K. nas redes — ela afirmou que nunca demitiria alguém que pensa diferente dela. Apesar do tiroteio virtual, a HBO continua a bancar o projeto, que estreia em 2027.

O mesmo horizonte não se vê diante de Neil Gaiman: seus contratos foram todos rasgados. Além do fim precoce de Sandman, a Netflix também cancelou o spin-off da trama, Garotos Detetives Mortos. A concorrente Prime Video vai verter em filme a terceira temporada da série Good Omens e deixou sem data de estreia a adaptação de Os Filhos de Anansi, que está pronta. Uma produção teatral baseada no livro Coraline também saiu de cartaz e a editora de Gaiman deixou de publicar sua obra. A ascensão e queda de uma estrela em Hollywood pode ser dura, mas pior é o caso dos que confiaram nessas personalidades — e descobriram que o sonho de lucro pode se tornar um pesadelo.
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2025, edição nº 2950