Em uma bela mansão com vista para o mar, convidados de uma cerimônia aguardam a resposta dos noivos para a clássica pergunta: aceita se casar? Na tradição do altar, a questão é meramente protocolar, mas aqui ela cria uma real dose de expectativa. Os pombinhos em questão já haviam feito juras de amor, após encontros separados por uma parede. Agora, com um mísero mês de convivência cara a cara, eles devem decidir se funcionou ou não o experimento proposto pelo Casamento às Cegas Brasil, popular reality show casamenteiro da Netflix. A reportagem de VEJA acompanhou a gravação da cena que vai ao ar na quarta temporada do programa, em 2024, com uma novidade: desta vez, todos os participantes são divorciados ou já tiveram noivados fracassados — numa dinâmica com contornos de “uma segunda chance para o amor”.
Lançado em 2020, nos Estados Unidos, o reality encontrou público cativo no Brasil. A terceira temporada da edição nacional, exibida neste ano, somou 20 milhões de horas consumidas pelos assinantes da plataforma. De modo a continuar lucrando com o filão da vida como ela é nas relações, a Netflix Brasil lançou uma espécie de programa pós-altar, o Ilhados com a Sogra. Com um prêmio de 500 000 reais, o reality uniu genros e noras com suas respectivas sogras para disputarem, juntos, provas que exigem relações harmoniosas para serem bem-sucedidas. Outro fenômeno de audiência, Ilhados já tem uma segunda temporada em desenvolvimento.
True Story: What Reality TV Says About Us
O gosto do brasileiro pelo formato do reality show não é novidade — a exemplo do incansável Big Brother Brasil, da Rede Globo, que caminha para sua 24ª edição. O apelo dos dois títulos da Netflix, porém, reflete tendências culturais e comportamentais curiosas. Em tempos de baixa na audiência das novelas brasileiras, realities oferecem tramas folhetinescas com mocinhos e vilões, triângulos amorosos e relações familiares conturbadas — além de dilemas sérios do mundo real, como o machismo e o racismo. Eles ainda garantem ao público uma continuação sem prazo para acabar, após o desligar das câmeras, nas redes sociais, onde os curiosos de plantão procuram saber como está a vida dos participantes.
Nesse ambiente virtual, a verdadeira força motriz de tamanho sucesso se revela — e Freud, literalmente, explica. Já dizia o pai da psicanálise que o narcisismo é ativado pela “obsessão por diferenciar-se” daquilo que se revela “familiar”. Realities são especialistas em mostrar na tela pessoas que não conseguem enxergar além da própria perspectiva — e, fora dela, espectadores que sentem prazer em julgar o próximo, mesmo cometendo os mesmos erros ou piores. “Muitos falam e fazem absurdos na frente das câmeras e depois culpam a edição”, diz Camila Queiroz, coapresentadora de Casamento às Cegas Brasil ao lado do marido, Klebber Toledo, que complementa: “Os cortes até minimizam certas atitudes”. Já os que são capazes de reconhecer nos outros seus erros podem fazer do entretenimento descompromissado uma lição valiosa. “É possível entender as próprias dificuldades e achar formas de contorná-las”, teoriza Shenia Karlsson, psicóloga que participa de Ilhados com a Sogra em sessões de terapia para lá de públicas com os participantes. Do sofá de casa, é um deleite acompanhar conflitos alheios, como demonstra o sucesso desses programas.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868
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