As derrapadas da superprodução da Netflix sobre a vida de Ayrton Senna
Série estreou no streaming no último dia 29
Para os fãs de automobilismo, sobretudo os mais nostálgicos, a badalada série da Netflix sobre a vida de Ayrton Senna é um show de velocidade — e entrega o que dela se esperava no circuito esportivo. As réplicas de carros antigos das competições, tanto das categorias de acesso até a F1, assim como as tomadas de corridas, cheias de closes mostrando como eram os tempos em que não havia quase nenhuma eletrônica embarcada e os pilotos tinham que ser virar literalmente no braço, estão entre as melhores coisas já produzidas nesse campo, de um nível comparável ao do sensacional filme Rush, feito a respeito da rivalidade entre Niki Lauda e James Hunt na disputa pela temporada de 1976.
Seguindo nessa mesma comparação, aparece a primeira derrapada de Senna: enquanto Rush conta com diálogos de primeira e um par de protagonistas desempenhando seus papéis em nível alto, com nuances de forma a demarcar as contradições e fraquezas dos corredores — palmas nesse aspecto para Chris Hemsworth (Hunt) e Daniel Brühl (Lauda) –, a série da Netflix sofre para pegar no tranco com os atores. O esforçado Gabriel Leone até larga na frente na caracterização física de Senna, que é muito convincente, mas come poeira no esforço dramático. Nos piores momentos, lamentavelmente, ele é do nível de Ricardo Macchi como o cigano Igor da novela Explode Coração. Mais constrangedora ainda é a caracterização para lá de caricata do narrador Galvão Bueno, que parece mais adequada a um quadro de humor do antigo Casseta e Planeta Urgente. Irmã do piloto e grande responsável por transformar o legado dele num grande trabalho de educação para o Brasil, Viviane Senna também merecia uma atriz e diálogos melhores na série.
Por falar na família Senna, o fato de a série ter sido autorizada por ela gera outras derrapadas na produção. Um dos grandes rivais de Senna e figura história do automobilismo nacional, Nelson Piquet é atirado para a caixa de brita no roteiro, embora tenha sido contemporâneo de Ayrton. Piquet, inclusive, conquistou o tricampeonato da categoria em 1987, um ano antes do primeiro título mundial de Senna. Assim, pela primeira vez na história, o Brasil tinha dois troféus seguidos, ganhos por pilotos diferentes, algo que dificilmente vai se repetir novamente. A ausência de Piquet na série talvez se explique por um possível veto da família Senna em resposta à língua ferina dele, que espalhou nos bastidores piadas de mal gosto a respeito da sexualidade de Ayrton. Mas é uma pena que esse capítulo importante, tanto pelo aspecto glorioso quanto pelo folclórico, tenha ficado de fora.
No campo amoroso, aliás, outra ausência (proposital?) já identificada foi a de Adriane Galisteu, última namorada do piloto. Segundo o noticiário a respeito, a família Senna a via como uma arrivista disposta a tudo para pegar carona na fama e fortuna de Senna, enquanto o verdadeiro amor da vida do piloto teria sido a apresentadora Xuxa. O roteiro parece dar razão a essa tese: Galisteu aparece em poucas cenas, enquanto Xuxa ganha um capítulo inteiro dedicado ao romance dela com o corredor.
Senna peca também pelo esforço de retratá-lo na grande maioria do tempo como um mocinho com o tanque cheio de escrúpulos em meio a adversários desleais e lutando o tempo inteiro contra a politicagem do esporte, rodeado por abutres na forma de jornalistas sensacionalistas. Senna tinha enormes qualidades, a começar pelo talento e o profissionalismo acima da média, mas era também conhecido por sua agressividade na competição e, nas relações com os cartolas da F1 e com a imprensa, não tinha nada de ingênuo, sempre soube jogar o jogo.
A série tem muitos méritos é verdade — e certamente vai fazer sucesso. No quesito diversão descompromissada, vale maratonar os seis capítulos. Mas a produção ficou para trás no esforço de jogar um pouco mais de sombra a essa personalidade tão complexa, vencedora e fascinante.