Uma pequena crônica de grande conteúdo
Valei-me, Nossa Senhora do Conteúdo! Que meu texto possa transcender o acanhamento de sua forma tão banal para adentrar o reino mágico e eterno do conteúdo, onde todos seremos felizes consumidores de cultura para sempre. Tudo indica que o conteúdo começou a se libertar do continente rumo ao céu da mistificação ali por volta dos […]
Valei-me, Nossa Senhora do Conteúdo! Que meu texto possa transcender o acanhamento de sua forma tão banal para adentrar o reino mágico e eterno do conteúdo, onde todos seremos felizes consumidores de cultura para sempre.
Tudo indica que o conteúdo começou a se libertar do continente rumo ao céu da mistificação ali por volta dos anos 1990, quando os estudiosos mais antenados da comunicação começaram a lhe atribuir um sentido fetichista que não estava nos planos da palavra quando ela nasceu, provavelmente no latim vulgar contenutus, para designar de modo prosaico aquilo que estava contido num recipiente: o conteúdo de uma garrafa, por exemplo.
É claro que os sentidos figurados de conteúdo não são novidade. “Esse livro (ou filme, programa de TV etc.) é divertido, mas falta-lhe conteúdo” – frases desse tipo são usadas há tempos por quem quer denunciar em algum produto cultural uma escassez de substância ou seriedade.
Mesmo assim, um salto qualitativo semântico foi dado recentemente, quando o conteúdo ganhou uma autonomia até então impensável. Hoje, deve-se crer que é possível produzir conteúdo abstrato, solto no ar, adaptável a qualquer continente que esteja à mão.
A lógica disso é econômica, no fim das contas. Funciona assim: se você é um jornalista, roteirista ou escritor realmente atualizado, um verdadeiro profissional de conteúdo, seu trabalho precisa se prestar a ser veiculado com a mesma eficácia em qualquer meio, da TV à internet, passando por jornais, mensagens de celular, linguagem de sinais etc. Sai mais em conta, sabe?
A ironia é que, frequentemente, quem fala demais em conteúdo não tem nenhum.