Uma febre pode ser ‘termometrada’?
“Sou leitor de sua coluna e, admirador de seu trabalho, encaminho ao senhor uma dúvida surgida recentemente. Sou médico e trabalho em um hospital universitário. Apesar de minha formação na área das ciências biológicas, acredito que os profissionais da saúde são na verdade da área das ciências humanas. Afinal, lidamos com relações e conflitos sociais […]

“Sou leitor de sua coluna e, admirador de seu trabalho, encaminho ao senhor uma dúvida surgida recentemente.
Sou médico e trabalho em um hospital universitário. Apesar de minha formação na área das ciências biológicas, acredito que os profissionais da saúde são na verdade da área das ciências humanas. Afinal, lidamos com relações e conflitos sociais todo o tempo. Nesse esforço, eu me empenho em empregar o mais corretamente possível as regras de português, ainda que meus colegas de categoria desdenhem de tais normas.
Recentemente, fui corrigido por um colega ao apresentar o resumo de um caso clínico em uma reunião. O termo da discórdia foi ‘febre não termometrada’. O colega me escreveu lembrando que termômetro não é verbo e que, portanto, não existe ‘febre não termometrada’. Fiquei curioso. Pesquisei em dicionários e, de fato, não vi menção a essa expressão. Mas esse é um termo consagrado no meio médico, utilizado por várias revistas médicas de língua portuguesa, muitas delas compostas por equipes de redatores para julgamento dos textos e orientação nas fases de correção e edição. Confirmei que na atualidade muitas revistas mantêm esse termo, sem que seja suprimido pelos revisores.
Minha dúvida: o termo ‘termometrada’ pode ser empregado no meio médico, considerando o uso consagrado na área da saúde?” (Bruno Sanches)
Em primeiro lugar, louve-se a preocupação de Bruno Sanches em harmonizar o vocabulário de sua profissão com a língua do mundo lá fora – no caso, fora dos hospitais e consultórios. Por mais especializados que sejam os termos técnicos de qualquer ofício, perder de vista a ponte com a linguagem comum é trabalhar contra a circulação de ideias e a construção de uma cultura realmente democrática, como provam, por exemplo, os casos mais extremos de juridiquês.
Dito isso, não existe atividade humana que deixe de criar, em alguma medida, seu próprio jargão. O verbo termometrar, sob a forma do particípio “termometrado”, parece entrar nessa categoria. Dicionários não registram a palavra, da mesma forma que não registram uma infinidade de termos profissionais de uso restrito. Ocorre que, se os médicos decidiram adotá-la, seria um erro dizer que ela não existe. Existe para eles.
Do ponto de vista de sua formação, “termometrar” faz sentido. Trata-se de um verbo forjado no mesmo molde de cronometrar, hectometrar, milimetrar, podometrar e quilometrar – para citar os cinco que o Houaiss reconhece com tal terminação.
Por outro lado, bastaria falar em “febre não medida” para passar exatamente a mesma mensagem, não? Acredito que sim, mas nada entendo de medicina e não gostaria que um médico viesse dar palpite no jargão de jornalistas e escritores, que também tem seus termos não dicionarizados.
Minha conclusão é que, se está consagrada no meio, a expressão “febre não termometrada” pode ser usada sem contraindicações em textos escritos por médicos para médicos. Se o público-alvo for mais amplo, convém evitá-la.
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