Um Dunga, muitos dungas
Uma prova de que o tempo passa depressa: a primeira frase que me vem à cabeça para apresentar a crônica abaixo, sobre a origem do apelido do novo (!?!?) técnico da seleção brasileira, dá conta de que ela foi publicada nesta coluna no já distante 25 de junho de 2010. Distante parece mesmo aquele dia, […]

Uma prova de que o tempo passa depressa: a primeira frase que me vem à cabeça para apresentar a crônica abaixo, sobre a origem do apelido do novo (!?!?) técnico da seleção brasileira, dá conta de que ela foi publicada nesta coluna no já distante 25 de junho de 2010. Distante parece mesmo aquele dia, duas Copas e mais de quatro anos atrás, quando, de olho nos gramados da África do Sul, ainda estávamos longe do duro aprendizado das goleadas e concentrávamos nossos receios na possibilidade de ver a seleção eliminada do Mundial por uma derrota apertada. Tolinhos.
Mesmo assim, reconheça-se que o tempo é feito de matéria maleável. Se para alguns passa depressa, é inegável que para outros, como aqueles que comandam a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), anda em círculos feito um cachorro que persegue o próprio rabo. Pois é: quando era mais estridente o clamor popular por uma renovação completa no embolorado, corrupto, antiquado, decadente futebol brasileiro, eis que Dunga está de volta. Se com ele volta esta crônica, não culpe o colunista, caro leitor. Ele adoraria estar tratando aqui de uma palavra nova.
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Palavras são bonecas russas. Dentro do Dunga há um anão orelhudo, e dentro deste um bambambã nordestino, onde por sua vez dorme alguém que é exímio em sua atividade, um ás. Ás em cujo coração, que é negro, palpita provavelmente um vocábulo do quicongo, língua da família banta: “ndunga, pessoa de grande porte” (Nei Lopes). Todos dungas.
Assim, recuando no tempo, os fantasmas que Dunga arrasta atrás de seu nome incluem um item de cultura pop americana, um brasileirismo do século XIX, um regionalismo nordestino e um termo introduzido no país por escravos. Mas seria ndunga o miolo, enfim? O dunga essencial, o caroço da palavra, dentro do qual não há nada, só matéria sólida ou, pelo contrário, um oco? Vai saber. Como adivinhar os sentidos que o velho idioma quicongo guarda dentro de ndunga? Palavras são bonecas russas, mesmo quando africanas.
O certo é que o chefão do time brasileiro e os outros Dungas espalhados pelo país herdaram seu nome de guerra do anão da Branca de Neve, figura marcante do filme de 1937 em que a Disney, ao inventar o longa-metragem de animação, batizou finalmente os sete baixinhos anônimos dos irmãos Grimm. Sua pequena estatura na ocasião, como ocorre em outros casos com orelhas proeminentes, foi o bastante – coisa de apelido, pura zoação. Zangado seria uma alcunha mais fiel ao jeito do gaúcho Carlos Caetano, mas o meigo e apalermado Dunga – Dopey no original, “abobado, estúpido” – é o mais popular da turma, além de ter o nome mais engraçado.
Aqui é preciso reconhecer o tributo que deve o Dunga nacional aos tradutores do filme. De bobo aquele anão só tinha a cara, basta observar que nenhum dos outros seis é páreo para ele na intimidade física com Branca de Neve. Mesmo assim, seu rebatismo brasileiro é pura ironia, como a de chamar um sujeito tapado de gênio. Dunga, “o ás”, aquele bebezão? “De grande porte”, o tampinha? Às vezes a fábrica de bonecas russas trabalha por oposição, inversão, e não por semelhança ou continuidade.
Mas há coincidências engraçadas. No romance “Vidas secas”, Graciliano Ramos descreve alguém que lembra um pouco o treinador da seleção: “Ele não era dunga na cidade? Não pisava os pés dos matutos, na feira? Não botava gente na cadeia?”. Agora, na África de ndunga, Dunga joga todas as suas fichas: com seu estilo norte-coreano de administração, sua aspereza no trato e a animosidade que vem cultivando com a imprensa, não parece ter diante de si muitas possibilidades além de voltar campeão ou em opróbrio. Ás ou Dopey. Dunga de uma forma ou de outra.