‘Um bom lugar para viver’ – ou ‘para se viver’?
‘BH é a melhor capital para (se?) viver’: esqueça o bairrismo, a dúvida é gramatical “Prezado Sérgio: por favor, desfaça uma dúvida que sempre me assalta. O que é o certo: ‘Belo Horizonte é a melhor capital para se viver’ ou ‘Belo Horizonte é a melhor capital para viver’? O mesmo se dá em: ‘As […]

“Prezado Sérgio: por favor, desfaça uma dúvida que sempre me assalta. O que é o certo: ‘Belo Horizonte é a melhor capital para se viver’ ou ‘Belo Horizonte é a melhor capital para viver’? O mesmo se dá em: ‘As dez melhores empresas para se trabalhar’ ou ‘As dez melhores empresas para trabalhar’? Obrigado.” (Hélvio Brito)
A dúvida de Hélvio nos lança num fogo cruzado dos mais interessantes, entre a velha gramática normativa e a nova linguística.
Segundo a gramática normativa, dedicada à perpetuação de um sistema de regras fixado há tempos e com ambição de validade para todo o universo da lusofonia, a única construção correta nesses casos é aquela sem o pronome “se”.
Portanto, para usar a língua-padrão e se pôr a salvo de críticas conservadoras, o falante deve optar por “Belo Horizonte é a melhor capital para viver” (o bairrismo de Hélvio merece debate à parte, claro) e “As dez melhores empresas para trabalhar”. O argumento é o de que o verbo no infinitivo já é impessoal, dispensando assim o reforço da indeterminação do sujeito representado pelo pronome “se”.
A linguística, mais interessada em flagrar e compreender as mudanças na língua enquanto elas inevitavelmente ocorrem, conta uma história diferente. Com olhar atento ao que as pessoas de fato falam (e não só as que “falam errado”, como sugere uma visão preconceituosa, mas também aquelas com alto nível de educação formal), mostra que no português brasileiro, inclusive entre falantes cultos, faz tempo que as construções com o “se” antes do verbo no infinitivo são consideradas normais.
Em seu livro “Português ou brasileiro” – uma prova de que a argumentação embasada lhe cai melhor do que o ativismo político simplista em que às vezes se perde –, o linguista Marcos Bagno colhe na imprensa e na literatura (de Clarice Lispector) fartos exemplos do uso do “se” antes de verbo no infinitivo para concluir que, “na sintaxe brasileira, aumenta progressivamente a tendência a não se deixar nenhum verbo sozinho, desacompanhado de seu sujeito, mesmo quando esse verbo é um infinitivo tradicionalmente classificado de impessoal”.
A conclusão me parece perspicaz e ajuda a entender por que uma antologia de nosso maior cronista vivo, Luis Fernando Verissimo, organizada e lançada em 2001 por uma futura integrante da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Machado, intitulava-se despudoradamente “Comédias para se ler na escola” – e não “Comédias para ler na escola”, como os tradicionalistas dizem ser obrigatório.
Isso não nos autoriza a cair no extremo oposto, como Bagno passa perto de fazer. Se é indiscutível que ninguém mais consegue tirar o pronome da expressão “como era de se esperar”, também é verdade que considerá-lo sempre obrigatório, tratando a forma tradicional como simples “entulho normativista” sem sustentação na língua contemporânea, deixaria de levar em conta sinais eloquentes da coexistência dos dois usos, inclusive na fala popular. Não fosse assim, já teríamos dado um jeito de copidescar uma locução de emprego amplo como “osso duro de roer”. E dificilmente aquela série cinematográfica de sucesso se chamaria “Duro de matar”.
Conclusão: estamos diante de mais uma daquelas situações ambíguas em que o falante consciente, depois de se informar, deve decidir seu próprio caminho. Aos que se irritam com isso (“falou, falou e não disse nada!”, costumam reclamar), recomendo abolir o pronome “se” e escrever “As melhores empresas para trabalhar” – pronto, não se fala mais nisso.
Mas pensar é melhor.
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