Sobre um poema de Wislawa Szymborska
Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito? Livro aberto a esmo, à procura de um consolo aleatório para dor difusa, ela vê surgir à sua frente o bosque alfabético. Antes de ter tempo de formular para si própria a questão, entro? não entro?, já entrou. Uma violência latente se organiza. Numa gota de […]

Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?
Livro aberto a esmo, à procura de um consolo aleatório para dor difusa, ela vê surgir à sua frente o bosque alfabético. Antes de ter tempo de formular para si própria a questão, entro? não entro?, já entrou.
Uma violência latente se organiza.
Numa gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho semicerrado
prontos a correr pena abaixo
rodear a corça, preparar o tiro.
É ela mesma a corça, claro, compreende com uma espécie de desmaio que não é dos sentidos, mas da vontade. Rodeada de palavras caçadoras, ela, a palavra-caça, descobre que sua dor ficou menos difusa: agora tem nome, boca com gosto de café, queixo reto e áspero e uns olhos que um dia foram impossivelmente doces e hoje estão interditados pelo adeus. Ao mesmo tempo, espera – será possível?
Aqui no bosque escrito, a dor dói menos.
Para sempre se eu assim dispuser nada aqui acontece.
Sem meu querer nem uma folha cai
nem um caniço se curva sob o ponto final de um casco.
Ela sorri. Ah, ficar aqui, ir ficando, enquanto durar a eternidade. No bosque escrito, a corça e o caçador se fitam, imóveis. A impossível doçura do olhar que trocam transborda do tinteiro, alaga a escrivaninha, jorra em cascata até o chão de tábuas corridas, logo inunda a casa, o bosque, o mundo.
A alegria da escrita.
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal.