Sinceramente, a sinceridade não é isso que dizem
A etimologia é cheia de histórias pitorescas, mas não tão cheia que desestimule a imaginação popular de inventar mais algumas. Esta é a principal armadilha no caminho do caçador de “curiosidades etimológicas”: ignorar os esforços dos estudiosos sérios da matéria e abraçar uma daquelas teses que circulam em correntes da internet ou livrinhos de divulgação […]
A etimologia é cheia de histórias pitorescas, mas não tão cheia que desestimule a imaginação popular de inventar mais algumas. Esta é a principal armadilha no caminho do caçador de “curiosidades etimológicas”: ignorar os esforços dos estudiosos sérios da matéria e abraçar uma daquelas teses que circulam em correntes da internet ou livrinhos de divulgação etimológica simplesmente porque elas soam fofas, cômicas ou poéticas. Ah, mas a tese é duvidosa, quando não inteiramente descabelada? E quem está ligando para isso?
Bom, acredito que muita gente esteja. A falsa curiosidade etimológica tem o mesmo valor de um falso brilhante. Ou de um vaso de “antiga cerâmica romana” fabricado semana passada em Osasco, para usar a imagem marcante de uma antiga lenda etimológica que volta e meia reaparece, a da suposta origem do adjetivo sincero. O texto que circula há alguns anos como corrente internética comporta variações secundárias, mas a essência é a seguinte:
A palavra SINCERO foi inventada pelos romanos. Eles fabricavam certos vasos de uma cera especial. Essa cera era, às vezes, tão pura e perfeita que os vasos se tornavam transparentes.
Em alguns casos, chegava-se a se distinguir um objeto – um colar, uma pulseira ou um dado –, que estivesse colocado no interior do vaso.
Para o vaso assim, fino e límpido, dizia o romano vaidoso:
– Como é lindo!!! Parece até que não tem cera!!!
“Sine cera” queria dizer “sem cera”, uma qualidade de vaso perfeito, finíssimo, delicado, que deixava ver através de suas paredes e da antiga cerâmica romana. O vocábulo passou a ter um significado muito mais elevado. Sincero é aquele que é franco, leal, verdadeiro, que não oculta, que não usa disfarces, malícias ou dissimulações.
O sincero, à semelhança do vaso, deixa ver através de suas palavras os verdadeiros sentimentos de seu coração.
Com toda a sinceridade, nunca encontrei um etimologista de verdade que desse crédito a essa história. A origem do adjetivo latino sincerus, matriz do nosso, está provavelmente na junção de sim (um só) com cerus (que cresce, que se desenvolve), resultando na ideia de algo que é sempre igual a si mesmo, sem qualquer impureza, ambiguidade, reviravolta, surpresa. Sua primeira acepção no latim clássico era “puro, que não tem mistura (…), de boa qualidade” (Saraiva).