Sequer? Como quiser…
Esta dúvida é tão clássica que sequer preciso que me escrevam de novo para saber que mora na cabeça de muita gente: não estaria o “sequer” empregado indevidamente acima, uma vez que não tem valor negativo em si? O correto não seria dizer que “nem sequer preciso que me escrevam de novo”? Segundo as gramáticas […]
Esta dúvida é tão clássica que sequer preciso que me escrevam de novo para saber que mora na cabeça de muita gente: não estaria o “sequer” empregado indevidamente acima, uma vez que não tem valor negativo em si? O correto não seria dizer que “nem sequer preciso que me escrevam de novo”?
Segundo as gramáticas normativas – que ainda são as grandes balizadoras do certo e do errado em questões de língua –, sim, aquele uso é indevido. Como “sequer” significa simplesmente “ao menos”, a frase jamais poderia prescindir de um advérbio de negação. No entanto, acontece de prescindir o tempo todo no português da vida real, aquele que de fato se fala e se escreve, pelo menos no Brasil e inclusive no discurso de pessoas cultas. E agora?
Há duas formas de encarar a questão, à escolha do freguês. Uma é lamentar a decadência do idioma e lutar para que “sequer” tenha apenas o uso autorizado pelos sábios. A causa está provavelmente perdida de antemão, mas costuma dar a seus defensores alguma medida de conforto moral.
O segundo caminho, mais condizente com a linguística moderna, é reconhecer que as línguas vivas são organismos em constante mutação. Dessa nova perspectiva, parece natural e até saudável – segundo um princípio de elegância e concisão – que de tanto ser usado em construções de sentido negativo, e no português moderno quase exclusivamente nelas, “sequer” tenha incorporado a negação.
Ao se comportar assim, “sequer” tem pelo menos um predecessor ilustre: no português antigo, “jamais” desempenhava o papel subalterno de ajudante de advérbios de negação. Isso significa que era correto dizer o seguinte: “Nunca já mais (ou jamais) escreverei assim”. Veja-se que, no caso, não se tratava de negação dupla – não ainda. Foi de tanto auxiliar a negação que “jamais” acabou promovido a sinônimo de “nunca”.
Quem acha que posturas desse tipo logo nos conduzirão à barbárie deve ler ou reler um poeta que dificilmente poderia ser considerado um visigodo do idioma: Carlos Drummond de Andrade começou assim o poema O mito, publicado no já distante 1945 em “A rosa do povo”:
Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.