Sem perdão
Era um sujeito sério, carrancudo, aquele que bebia cerveja sozinho, em pé ao meu lado no balcão do botequim. Com boa vontade, diante da crescente expectativa de vida da população, talvez se pudesse dizer que era um homem de meia idade, mas a verdade é que estava mais para dois terços. Reparei que ele era […]
Era um sujeito sério, carrancudo, aquele que bebia cerveja sozinho, em pé ao meu lado no balcão do botequim. Com boa vontade, diante da crescente expectativa de vida da população, talvez se pudesse dizer que era um homem de meia idade, mas a verdade é que estava mais para dois terços.
Reparei que ele era a única pessoa em toda a ruidosa clientela da tarde de domingo a não prestar atenção no jogo em andamento na tela gigante atrás do balcão, próxima ao teto. Ao lado da incongruência de seu paletó preto e gravata cinza entre tantas bermudas e chinelos, o perfeito alheamento contribuía para a impressão de que habitava uma bolha, uma transversal qualquer do tempo em que reinasse a mais pura melancolia.
Cheguei a imaginar bestamente, enquanto esperava pela demorada cobrança de um escanteio, que talvez eu fosse o único a enxergá-lo. Seria um fantasma? Quem sabe o famoso Sobrenatural de Almeida? Afinal, era um Fla x Flu.
De repente, em voz baixa, olhos mergulhados em seu copo, o fantasma disse:
– Eu nunca pedi perdão a ele.
Demorei um pouco a entender que falava comigo. Não havia mais ninguém ao alcance de sua voz.
– Oi?
– Meu falecido pai. Tricolor doente. E hoje é Dia dos Pais.
– Eu sei – respondi secamente, tentando cortar o papo. Talvez não fosse um fantasma, mas com certeza era maluco.
– Quanto está o jogo?
– Zero a zero.
– Tomara que o Fluminense faça um gol – suspirou o homem, sem erguer os olhos para a televisão. – Você me avisa se fizer?
– Não precisa. Metade do bar vai gritar, não tem como não saber.
Pela primeira vez, ele moveu a cabeça e olhou para mim.
– Você acha que ele me perdoou?
– Hein?
– O meu pai. Fico imaginando se de repente ele me perdoou, mesmo eu nunca tendo pedido perdão.
– Isso eu não sei. Depende.
– Depende de quê?
– Do que você fez pra ele.
O homem voltou a encharcar seu olhar na cerveja e baixou a voz ainda mais. O que ouvi foi quase um sussurro:
– Virei Flamengo.
Não contive um riso curto.
– Ah, só isso? Pois fez muito bem.
Voltei a me concentrar no jogo e quando me dei conta, um minuto depois, o homem tinha sumido. No botequim agora só havia bermudas, chinelos, risos, torcedores zoando uns aos outros: a mais pura alegria.
Como se habitasse uma bolha ou uma transversal do tempo, eu já não conseguia fazer parte dela.