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Sobre Palavras

Por Sérgio Rodrigues Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.

Se mataram o peru, por que ele foi morto e não matado?

“Prezado Sérgio, a gramática normativa diz que, com os verbos transitivos indiretos, exceto obedecer, pagar, perdoar e responder, não se deve usar a voz passiva. Até aí tudo bem. Diz igualmente que não se usa a voz passiva com verbos intransitivos. Exemplos: ‘O gato fugiu’, ‘Ana caiu’. Porém, a frase ‘O peru morreu’, há perfeitamente […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 11h52 - Publicado em 26 Maio 2011, 14h15

“Prezado Sérgio, a gramática normativa diz que, com os verbos transitivos indiretos, exceto obedecer, pagar, perdoar e responder, não se deve usar a voz passiva. Até aí tudo bem. Diz igualmente que não se usa a voz passiva com verbos intransitivos. Exemplos: ‘O gato fugiu’, ‘Ana caiu’. Porém, a frase ‘O peru morreu’, há perfeitamente como colocá-la na voz passiva: ‘O peru FOI MORTO’. Dizei-me: qual a explicação para esse caso, considerando que o verbo morrer é intransitivo?” (Carlos Vasconcelos)

A explicação para a perspicaz dúvida de Vasconcelos vai surpreender muita gente: morto, nesse caso, é particípio do verbo “matar”, transitivo direto, e não de “morrer”. Para entender como tal coisa veio a ocorrer, é preciso antes de mais nada dar um passeio pelos séculos de formação da língua portuguesa moderna, quando muitos verbos foram personagens de uma guerra entre o particípio regular e o irregular.

O particípio regular é aquele que se forma com as terminações “ado” e “ido”, como, para ficar nos verbos trazidos pelo leitor, “matado” e “morrido”. O particípio irregular é na maior parte dos casos uma herança do particípio passado do latim, e em outros formado no português mesmo. No caso em questão, por uma razão peculiar que veremos abaixo, é “morto” (do latim mortuus) para os dois verbos.

A disputa surda entre os dois tipos de particípio ao longo dos séculos teve resultados variados. Houve casos em que o particípio irregular perdeu e acabou desalojado do papel de verbo. Cinto, que já foi particípio de cingir, virou substantivo. Absoluto, ex-particípio de absolver, sobreviveu no papel de adjetivo.

Em compensação, muitos particípios irregulares ganharam espaço à medida que a história do português ia amadurecendo, a ponto de fazer o particípio regular de certos verbos soar deselegante. Os autores modelares do português antigo só escreviam “elegido”, por exemplo. Foi no século 16 que “eleito” passou a ter preferência, sobretudo quando se emprega o verbo na voz passiva (“foi eleito”), caso em que é praticamente exclusivo. “Ganhado” reinou absoluto por mais tempo, passando só no século 19 a enfrentar a concorrência de “ganho”.

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Os verbos que têm dois particípios são chamados de abundantes. Alguns exemplos clássicos (na ordem regular-irregular) são pagado e pago, pegado e pego, aceitado e aceito, gastado e gasto, entregado e entregue. Em geral, o regular é mais usado na voz ativa (“ter gastado”) e o irregular, na passiva (“ser gasto, estar gasto”), mas há muitos casos em que o emprego de um ou outro é indiferente, ou antes uma simples decisão de estilo.

Falta explicar por que morto, particípio irregular de morrer, foi convocado a fazer dupla jornada como particípio irregular também de matar, terminando por aparecer na frase que motivou a dúvida de Carlos Vasconcelos: “O peru foi morto”. Em sua “Gramática histórica da língua portuguesa”, Said Ali sugere que a lógica de tal fato é a do eufemismo, isto é, a intenção de suavizar uma expressão considerada grosseira.

Escreve Ali: “É singular a aversão que sempre manifestaram os escritores portugueses pelo particípio derivado naturalmente do verbo matar…” E em seguida: “…a gente letrada cristã, quinhentista e seiscentista, conservou-se fiel à tradição de pedir o particípio emprestado ao verbo morrer, dando-lhe significação ativa”.

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