Santo erro de tradução: por que o céu virou ‘firmamento’
São Jerônimo em pintura (de 1480) do italiano Domenico Ghirlandaio É curiosa a história da palavra “firmamento”, um sinônimo culto – e na língua contemporânea um tanto preciosista – de “céu, abóbada celeste”. Mais curiosa ainda por conter, tudo indica, um erro de tradução. Continua após a publicidade No latim, no qual o português foi […]

É curiosa a história da palavra “firmamento”, um sinônimo culto – e na língua contemporânea um tanto preciosista – de “céu, abóbada celeste”. Mais curiosa ainda por conter, tudo indica, um erro de tradução.
No latim, no qual o português foi buscar a palavra ainda no século XIII, firmamentum demorara séculos a ganhar tal acepção cósmico-religiosa.
Como seu radical sugere claramente a ouvidos neolatinos, a palavra tinha no latim clássico sentidos ligados apenas à ideia de firmeza: queria dizer “sustentáculo, apoio, arrimo, esteio” (Saraiva). Como o céu acabou entrando nessa história?
Tal sentido surgiu no latim eclesiástico, na tradução da Bíblia (a Vulgata) feita por Eusebius Sophronius Hieronymus, mais conhecido como São Jerônimo (347-420).
Firmamentum coeli ou apenas firmamentum foi a versão latina encontrada por Hieronymus para o hebraico rakia, “céu, extensão, amplidão”, ou para sua tradução grega steréoma, “construção sólida”. Há indícios de que esta tenha sido a fonte, mesmo porque Hieronymus sabia muito mais grego do que hebraico.
O filólogo catalão Joan Corominas conta que o termo do original hebraico, totalmente desligado da ideia de firmeza ou solidez, tinha sido “mal compreendido pelos tradutores gregos”, enganados por uma palavra semelhante em siríaco, e tal equívoco a tradução de São Jerônimo transportou para o latim.
Com erro e tudo, o firmamento celeste não demorou a se consagrar. Afinal, não era tão difícil encontrar uma justificativa para ele, como se vê nesta explicação do etimologista brasileiro Antenor Nascentes: “apoio do céu, abóbada cristalina que não deixa caírem sobre a terra as águas de cima, separadas das de baixo, o mar”.