Ressacas
‘O naufrágio do Minotauro’, de J.M.W. Turner Mais perigosa que os olhos de Capitu, uma ressaca voltou a castigar a costa carioca nos últimos dias. A palavra “ressaca” chegou ao português para nomear os acessos de fúria do mar ainda no século 17, vinda do espanhol: saca e resaca expressavam os movimentos de fluxo e […]

Mais perigosa que os olhos de Capitu, uma ressaca voltou a castigar a costa carioca nos últimos dias. A palavra “ressaca” chegou ao português para nomear os acessos de fúria do mar ainda no século 17, vinda do espanhol: saca e resaca expressavam os movimentos de fluxo e refluxo, de vaivém, de leva-e-traz das ondas.
Já o significado estendido ou metafórico de ressaca, que passou a expressar também o refluxo de ondas figuradas, ou o preço que se paga por surfá-las, é coisa do século 20 – da ressaca alcoólica à moral. Curiosamente, o sentido de mal-estar pós-bebedeira ficou tão popular que ameaça tragar o original. Não falta quem imagine, diante dos famosos “olhos de ressaca” de Capitu no romance “Dom Casmurro”, que a moça vivia de pálpebras baixas, cabeça latejando, incapaz de encarar a luz da manhã – na época não existia Engov.
Para restaurar as intenções de Machado de Assis, vale ler ou reler o seguinte trecho tendo em mente o recente episódio de violência das ondas:
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.