Rastaquera, uma herança do racismo francês
Outro dia, em sua página no Facebook, o editor Julio Silveira destacou o fato de, na Wikipedia francesa, o verbete rastaquouère – que deu origem ao nosso rastaquera, hoje sem trema, mas com a pronúncia de sempre – vir ilustrado por um desenho (ao lado) que retrata o ridículo personagem Le Brésilien (O Brasileiro), de […]

Outro dia, em sua página no Facebook, o editor Julio Silveira destacou o fato de, na Wikipedia francesa, o verbete rastaquouère – que deu origem ao nosso rastaquera, hoje sem trema, mas com a pronúncia de sempre – vir ilustrado por um desenho (ao lado) que retrata o ridículo personagem Le Brésilien (O Brasileiro), de uma famosa ópera-bufa de Jacques Offenbach chamada La Vie parisienne, que estreou em Paris em 1866.
O Brasileiro em questão era um novo-rico, sujeito dado à ostentação e inteiramente destituído de modos, verniz cultural e bom gosto. A sátira de Offenbach é anterior ao surgimento do termo rastaquouère, que data de 1880, pela simples razão de que as palavras costumam vir depois das coisas que nomeiam. Quando finalmente passou a circular, esse vocábulo pejorativo de indisfarçáveis tintas racistas não era aplicado apenas a novos-ricos de origem brasileira, mas também a sul-americanos em geral, a eslavos e até mesmo a latinos europeus não-franceses.
A palavra foi importada pelo francês do espanhol sul-americano (ar)rastracuero (literalmente, “arrasta-couro”). Trata-se de um termo que, segundo o Trésor de la Langue Française, tinha na Venezuela o sentido de “pessoa desprezível” e, em outros países, o de “comerciante de couro”. Tudo indica que a origem do vocábulo deve ser buscada mesmo nesta categoria profissional, pródiga na época em produzir novos-ricos e exportá-los para Paris, embora a acepção venezuelana não deva ser descartada. Curiosamente, o dicionário da Real Academia Española já não registra rastracuero, mas traz rastacuero como uma palavra importada do francês, com o sentido de “pessoa inculta, endinheirada e jactanciosa”. O arrasta-couro foi à França e voltou, mas voltou diferente.
Por aqui, rastaquera chegou no século 20 com a preconceituosa acepção parisiense, limada apenas da referência à origem geográfica do ofendido. Esta ainda é a única acepção que o Aurélio e o Michaelis registram, mas parece estar caindo em desuso. No Brasil, rastaquera virou quase sempre um sinônimo de “rude, ignorante” (Houaiss e Aulete) ou ainda, acrescento eu, de “primário, ordinário, sem valor”.