Quer perder tempo? Leia esta crônica!
Há mais de uma década escrevendo regularmente na imprensa sobre língua e linguagem, palavras e expressões, estou acostumado a encontrar um tipo de leitor que leva isso a mal, como se o próprio tema o ofendesse pessoalmente. A reação costuma ser típica: denunciar com alguma violência verbal a inutilidade profunda de qualquer texto que use […]
Há mais de uma década escrevendo regularmente na imprensa sobre língua e linguagem, palavras e expressões, estou acostumado a encontrar um tipo de leitor que leva isso a mal, como se o próprio tema o ofendesse pessoalmente. A reação costuma ser típica: denunciar com alguma violência verbal a inutilidade profunda de qualquer texto que use a linguagem para refletir sobre… a linguagem, imagine! Que falta de assunto! Quanta perda de tempo!
Isso sempre me intrigou. Num balanço desses mais de dez anos – e descontados possíveis casos em que crônicas pouco inspiradas tenham merecido tanta ira, não duvido nada – resta uma constatação curiosa: escrever sobre palavras é, para um certo tipo de cabeça, a maior de todas as futilidades. Incomparavelmente maior que fofoca de celebridade de quinta, notícia que repete o já noticiado, dica de leitura de miss, promessa de político, receita de pipoca de microondas ou qualquer outro desses graves assuntos que o variado mundo da informação tem a oferecer a gostos não menos variados. Quando se ensina uma regrinha gramatical, vá lá, isso tem sua utilidade. Mas falar da língua com o olhar do crítico cultural, desmontar clichês, situar na história um uso que se acreditava natural, brincar com as palavras? Bah!
É claro que tais leitores são minoria entre os que acompanham uma coluna do gênero, e tenho indícios de que vêm dar aqui mais por acaso do que por masoquismo. No entanto, a acusação de falta de assunto e perda de tempo sempre acaba reaparecendo. No começo ainda era possível descartá-la como mau humor ocasional de um ou outro. Há algum tempo comecei a pensar que estava diante de um sintoma.
Sintoma de quê? Bom, ainda não sei ao certo. Seria fácil falar em antiintelectualismo, uma das pragas da cultura brasileira (a outra é o intelectualismo), mas isso parece estar mais para sinônimo do que para explicação. O que fica claro é que existe, em parte da sociedade, a convicção de que a linguagem é um não-assunto. Ela nos fala dos pés à cabeça, do nascimento à morte, estejamos dormindo ou acordados, mas para muita gente não se pode falar dela. Como se a linguagem fosse um ponto cego, uma paisagem que, de tão cotidiana, já não conseguimos enxergar. Apontá-la é inútil porque não parece haver nada lá.
Uma vez o escritor americano David Foster Wallace abriu um discurso de paraninfo contando uma fábula singela. Dois peixes jovens cruzam com um peixe mais velho, que lhes pergunta: “Como está a água hoje, rapazes?” Os dois não respondem e, quando o veterano se afasta, se entreolham: “Água? O que é água?”