Quem se autoanalisa comete uma redundância?
“Caro Sérgio, grave problema psicológico me acomete. Não sei se o vernáculo me autoriza a proceder a uma análise de mim mesmo. Já que toda autoanálise é de si mesmo, como posso eu me autoanalisar sem ser repetitivo?” (Mauricio Fontes) A resposta é simples, Mauricio: relaxando um pouco o zelo com a redundância. Nem sempre, […]
“Caro Sérgio, grave problema psicológico me acomete. Não sei se o vernáculo me autoriza a proceder a uma análise de mim mesmo. Já que toda autoanálise é de si mesmo, como posso eu me autoanalisar sem ser repetitivo?” (Mauricio Fontes)
A resposta é simples, Mauricio: relaxando um pouco o zelo com a redundância. Nem sempre, na língua, a repetição de uma ideia é indesejável. Às vezes ela cumpre o papel de dar clareza ou ênfase, e em muitas outras é uma forma consagrada pelo uso. Talvez uma frase como “não vejo ninguém” devesse, segundo a lógica de que uma negação anula a outra, significar “vejo alguém”. Mas o fato é que não significa: trata-se de um reforço, de uma redundância que nem encaramos como tal, de tão ligada ao espírito do português.
Autoanalisar-se é um verbo pronominal, como suicidar-se e queixar-se. Isso quer dizer que, em estado de dicionário, o pronome já vem incorporado a ele. Ninguém pode autoanalisar, suicidar ou queixar outra pessoa, ou seja, tais ações são sempre reflexivas, direcionadas ao próprio sujeito. Você tem razão, portanto, ao imaginar que em tese isso seria suficiente para tornar dispensável o pronome oblíquo, que aqui não é importante para a compreensão da mensagem, ao contrário do que ocorre com verbos que podem ser pronominais ou não, como vestir e casar (o estilista veste-se, mas também veste a modelo; os noivos casam-se, mas o padre os casa).
Se estivéssemos falando de linguagem matemática, o pronome oblíquo de autoanalisar-se estaria mesmo sobrando. Ocorre que a tradição da língua não caminhou nesse sentido. Não no caso desse verbo, pelo menos. Há os que já tiveram um emprego pronominal que praticamente caiu no esquecimento (acordar-se) e também aqueles em que o uso acabou por tornar facultativo o pronome: arrepender(-se) e deitar(-se) são exemplos de ações que, mesmo quando reflexivas, frequentemente o dispensam, sobretudo na linguagem informal: “arrependeu do crime”, “deitou na cama”, “casei com fulana” são construções comuns. Também há fartos registros do emprego de “suicidar” sem pronome.
Não me parece, porém, que seja o caso de autoanalisar e queixar. Como grande parte de nossas angústias com a língua, esta se dissolve quando reconhecemos que é sábio ver sabedoria no uso.
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